Na época da escravidão no Brasil, era raro encontrar um escravizado que não tivesse uma marca de violação no corpo. Deixar marcado seu cativo era uma das formas que o senhor escravista tinha para subjugar e impor obediência. Açoitar pessoas escravizadas em praça pública era uma cena tão naturalizada naquela época, que artistas viajantes que visitaram nossa nação não deixaram de registrar, por meio de pinturas, de desenhos e de gravuras, o cotidiano de violência ao qual eram submetidas as pessoas escravizadas.
Passaram-se muitos anos desde o fim legal da escravidão no país. Mas todo o ódio que foi construído contra o povo negro, ao longo de quase 400 anos de vigência do trabalho escravo no Brasil, ainda é uma ferida viva em nossa sociedade. Nunca deixamos de açoitar a população negra em praça pública, seja de maneira simbólica, seja de maneira física. O chicote jamais parou de ser usado, só ganhou outras formas. Abordagens truculentas empenhadas pelo Estado em territórios periféricos não deixam de ser um tipo de açoitamento, porque também, em muitos casos, resultam em mortes e ferimentos, trazendo à tona marcas de violência e de dominação.
Recentemente, até uma coleira para cães foi usada como chicote para agredir, fisicamente, um motoboy negro em plena rua, em São Conrado, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. O trabalhador ficou com as costas marcadas depois de ter recebido os golpes, que foram aplicados por uma mulher branca. Ela ficou incomodada com a presença dele e de outra entregadora na calçada, já que, segundo a agressora, a dupla era da favela e não tinha o direito de permanecer no local. Aquela rua, onde a mulher esbravejou que “Quem paga IPTU aqui sou eu” em nova versão de “Olha com quem você está falando”, na visão dela, deveria ser desfrutada para passeio apenas pelos moradores. E, claro, sem ser importunados pela presença de pessoas “indesejadas”, adjetivo muito atribuído a pessoas negras e pobres.
A cena protagonizada pela mulher não é novidade na paisagem cotidiana brasileira atual. Quem não se lembra do adolescente negro despido, amordaçado e chicoteado por furtar chocolate em uma rede de supermercado, na Zona Sul de São Paulo, em 2019? Desta vez, o açoitamento do jovem aconteceu nos fundos do estabelecimento, mas ganhou a praça pública, porque foi gravado. Um vídeo repercutiu na internet, mostrando a vítima sendo torturada por dois seguranças. De tão grotesco, também é impossível de esquecer o episódio envolvendo outro adolescente negro, pelado, espancado e esfaqueado na orelha, amarrado a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta, por um suposto grupo de justiceiros, também na Zona Sul do Rio, em 2014.
Como se pode perceber, punições atreladas à violência vêm sendo perpetuadas no Brasil, onde quem é negro é tido como merecedor de chibatadas pelo simples fato de permanecer na calçada ou, em casos mais graves, de ter envolvimento com delitos, cuja penalidade acontece à revelia da justiça.
Há, em todos esses casos, além da violência, uma espécie de sadismo da parte de quem comete a agressão, um sentimento que ficou impregnado em nossa sociedade forjada a partir do sistema escravocrata brasileiro, um dos mais brutais da história. Um sentimento que, nos últimos anos, tornou-se mais exacerbado com a propagação de discursos de ódio, de desprezo contra os direitos humanos e de apologia a torturadores. Tudo isso foi capaz de criar um ambiente mais permissivo a situações como a cometida pela mulher de São Conrado, evidenciando que somos uma sociedade que ainda tem muito o que aprender sobre dignidade humana.