Memórias de muitos tempos: as 102 primaveras de Joana Luis
Mais antiga residente do Lar de Idosos Luiza de Marillac, centenária dona Joana testemunha, com lucidez, história da cidade que viu se transformar
Joana Luis vive o outono da vida. Tempo de perder algumas folhas, sentir a brisa soprando e colher os frutos. Tempo de serenidade, que reúne para resgatar as 102 primaveras que comemora neste domingo, numa missa na capela da Sociedade São Vicente de Paulo (Rua São Sebastião 412 – Centro), que precede o bolo com as velas a confirmar-lhe os dois anos nos quais é centenária. “Quando caí e me machuquei, não tinha ninguém para me olhar, e eu fui morar no abrigo dos Vicentinos. Já tem mais de 20 anos isso”, conta ela, que se mudou logo após a irmã mais velha, com quem vivia, e a mãe, de quem cuidava, terem morrido. “As crianças ficavam no segundo andar, mas costumavam ir nas nossas casas”, lembra-se ela do lugar central, de onde saiu há menos de uma década, transferindo-se para o Lar de Idosos Luiza de Marillac, no Bairro Furtado de Menezes. Num quarto pequeno com banheiro, a poucos metros da porta de entrada do abrigo, a mais antiga moradora passa seus dias, sob os olhares atentos dos profissionais que cuidam do local e dos vizinhos residentes. Gosta de viver? “A gente cansa, não é?! Sempre trabalhando, sempre fazendo a mesma coisa, uma hora cansa”, brinca a mulher de cabelos tão alvos quanto a pele.
Verão
Joana nasceu três dias depois do início da primavera de 1916, em Matias Barbosa, na zona rural onde viviam os pais e uma irmã. Como era costume na época, seu registro tardou e só foi feito, também, três dias depois. A família crescia, chegando a cinco irmãos e três irmãs, e mudou-se para Juiz de Fora quando Joana havia completado 2 anos. O pai plantava horta e a mãe era dona de casa, recorda-se ela, trazendo à memória a geografia de uma cidade distinta, com seu principal rio traçando outro desenho na paisagem ainda escassamente urbanizada e completamente partida pelo curso d’água. “No Bairro de Lourdes, onde é a Cesama hoje, era a horta do meu pai. Não passava rio ali. O Paraibuna passava perto do Cemitério, mas eles cortaram porque qualquer chuvinha que tinha alagava as ruas e estragava as coisas de todo mundo. Quando cortaram o rio, acabou a horta e mais duas casinhas dali, tudo de gente pobre. Fui criada ali com muito amor e compreensão. Todo mundo gostava de mim. Tanto é que sempre tem gente aqui me visitando”, diz ela, cuja infância foi vivida com as mãos na terra e nas sementes. “Eu ajudava a plantar as verduras. Naquela época, só tinha o Grupo Central para a gente estudar. Mas quando surgiu o emprego na fábrica, não pude mais estudar. Papai não deixava. Tinha que levantar cedo para trabalhar”, conta. Joana estudou até o terceiro ano. E, diferentemente dos irmãos, permaneceu em casa. “Uns saíram para aprender ofício fora e outros casaram”, comenta a mulher, que manteve-se ao lado pai por todos os anos de sua vida. Da mesma forma, agiu com a irmã mais velha e com a mãe, que se despediu aos 99. Única centenária da família Luis, Joana continuou firme, ainda que com saudades.
Outono
Joana ouviu o apito das fábricas de uma Juiz de Fora intensamente industrializada por 31 anos. Tocava o sinal e iniciava o expediente, ou indicava as pausas, ou o fim do turno. O ritmo acelerado das grandes máquinas que comandava começou cedo na vida. “Tinha que trabalhar para ganhar dinheiro e ajudar em casa, nas contas e no aluguel”, conta. “Abriu uma vaga no prédio em frente a Escola Normal, onde hoje é o Correios. Fui trabalhar na Fábrica Meurer (Companhia Fiação e Tecelagem de Malha Antônio Meurer). Fazia meias, ceroulas de algodão, que eles mandavam para esses lugares onde faz muito frio. Tinha muita saída. Eu trabalhava nas máquinas, era tecelã, fazia de tudo. Fiquei lá por 31 anos, até que eles fecharam, porque chegaram os fios mais finos e as máquinas não comportavam. Eles quebraram. Foram sete anos na Justiça, e não ganhamos quase nada”, lembra. Religiosa, passou a ajudar na Paróquia São José, ainda um “barracão grande”, que junto das amigas contribui para reunir fundos para a construção do prédio onde hoje ocorrem as concorridas missas do Padre Pierre com seus milhares de fiéis. Sempre católica? “Graças a Deus!”, sorri. “Lá em casa todo mundo era. Fui catequista e cheguei a tomar conta das catequistas. Tinham muitas crianças. As mães mandavam, mesmo. Quando ainda estava na fábrica, saía às 16h e ia correndo dar catecismo para as crianças”, recorda-se. Não quis ser freira. “Não tive condições de estudar para essas coisas”, diz. Nas lembranças da sobrinha Maria das Graças Souza, filha do irmão mais novo de Joana, vive uma mulher constantemente comprometida com o outro. “Meu pai morava com ela. Toda a vida sempre me dei melhor com ela do que com a minha mãe. Em todo lugar que ela ia, me levava. Lembro de ir muito para a igreja com ela, nas festas da paróquia, ajudando nas barracas”, lembra a sobrinha.
Inverno
Joana seguia a pé para a igreja todos os dias. “Depois que mudei para cá (para o Bairro Furtado de Menezes), ainda ia à missa das 7h na Catedral. Toda manhã eu levantava, tomava café, pegava o ônibus aqui e descia na Rio Branco. Mas já não me deixam sair mais, porque é perigoso. Mas vou à missa quando é festiva e quando podem me levar e me trazer”, lamenta a idosa, às voltas com as pernas inchadas e dores nos pés, além da dificuldade para se locomover. A queda que a levou a morar no abrigo é presença constante. Tanto que já operou quatro vezes. “Uma hora não colava, outra hora descolava, outra hora dava problema nos parafusos. Tudo num lugar só. Dá muita dor”, reclama, numa voz baixa e calma, logo alertando que ainda mantém boa saúde. “Hoje não tomo muito remédio, não”, orgulha-se a centenária, cujo perfil assistencial nunca lhe abandonou. “Gosto de ajudar a dobrar uma roupa na lavanderia”, conta. Desejos, apenas de tranquilidade. Joana Luis vive o outono da vida. “Mas hoje não quero mais nada, só que Deus guarde um lugarzinho para mim”, sorri e finaliza: “Acabei ficando sozinha, todos foram embora, meus irmãos e meus pais. Fiquei para contar a história.”