Em nome da doação: a história da Mamãe Noel Margarida
Solidária desde a infância, a faxineira aposentada Margarida organiza, há mais de três décadas, doações de brinquedos e lanches para crianças
Há 63 anos, o dia 28 de dezembro é o dia de Margarida Maria Gomes. Há 39, o mês ganhou mais um aniversariante, seu segundo filho, nascido no dia 16. Eram dois os motivos de festa, até que o sogro de Margarida morreu, com o neto ainda bem pequeno. Naquele ano, há mais de três décadas, sobrou tristeza e faltou a festa. “Não podia fazer algazarra. Meu filho falou, então, que tinha o sonho de ver o Papai Noel, pegar na mão dele, e nem precisava de festa, bastava isso. Conversei com a minha patroa, e ela me emprestou a roupa. Menti para o meu filho, falando que ia buscar a tia dele na rodoviária, mas fui para a casa da minha mãe, que morava de parede e meia comigo. Troquei de roupa lá e cheguei vestida de Papai Noel”, recorda-se a mulher. As crianças gritavam e pulavam de alegria. Enquanto o bom velhinho silenciava.
“Minha mãe falou que o Noel não podia conversar porque tinha arrancado um dente e estava com a boca anestesiada. Criança, qualquer coisa engana. Eu fiquei com medo de tossir e escapulir alguma coisa. Não queria estragar o sonho dele. Ele pedia para eu não ir embora, para eu esperar a mãe e a tia. O tempo foi passando, e ele pediu para eu levar as balinhas para as crianças da rua. Nessa, uma senhora me abraçou e falou: ‘Papai Noel, eu tenho quatro netos, perdi minha filha e meu genro num acidente e não tenho condição de dar presentes para as crianças. Pode fazer isso para eles no ano que vem?!'”, conta Margarida, já emocionada. No ano seguinte, comprou 50 brinquedos e distribuiu.
Hoje são 1.500 crianças, que recebem senha e formam uma fila, em diferentes pontos da cidade e em municípios da região, para ganhar um lanche e os presentes que Margarida compra em lojas da cidade e de São Paulo. Em 2019, a festa começou no sábado, 21, na Zona Rural de Olaria e, também, em Lima Duarte. Termina no dia de Natal, 25, na Zona Norte.
Natal é todo dia
Margarida é Mamãe Noel o ano inteiro. “Ajudo no que for preciso. Não é só no Natal que faço as coisas, não. Sempre tem um batendo na minha porta: ‘A senhora pode comprar um remédio para o meu filho?’, ‘A senhora pode comprar um botijão de gás para mim?’, ‘A senhora não tem um caderno para o meu menino?’, ‘A senhora tem pão e leite?'”, narra ela. E como a senhora faz?, pergunto. “Dou. Não sei fazer de outro jeito!”, ri. “Nunca me faltou nada. Sempre tive, Deus multiplicou, e meus filhos não passaram necessidade”, completa a mulher cujo pai morreu aos 39 anos, quando ela tinha apenas 1 ano e 8 meses. A mãe, então, passou a lavar roupa para fora para dar conta dos 12 filhos. “Hoje foi todo mundo embora. Sobraram só eu e um irmão”, lamenta ela, nascida e criada em Caratinga, de onde partem suas mais remotas memórias solidárias. “Lá em Caratinga, tinha um grupo espírita, e eu ia lá ajudar a distribuir pão. Eu me sentia no dever de contribuir. Levava 10, 15 pãezinhos para a criançada e ouvia ‘Que Deus abençoe você!’. Passei a ajudar a partir os pães, depois passei a pedir na padaria, e fui ganhando cem pães, manteiga e por aí foi. Em outro bairro ajudei o pessoal que fazia a sopa. Meu pai, dizem que era assim também, que não podia ver as pessoas passando necessidade. Eu, pequena, quando as galinhas da minha mãe botavam ovo, ia lá e dava. Ela falava: ‘Não sei, parece que tem um bicho comendo os ovos!’. Mas era eu. Tinha medo de falar com ela, porque, antigamente, as mães batiam, beliscavam. Um dia, contei. E ela falou para as galinhas botarem em mais quantidade para a gente conseguir dar mais. A gente deixou chocar para dar mais galinha e ter mais ovos”, lembra, sorrindo, como se revisasse cada detalhe da história.
Natal é estado
Aos 21, a Mamãe Noel Margarida trocou Caratinga por Juiz de Fora, para trabalhar como faxineira no Banco Bamerindus. “Vivi de faxina. Arrumei serviço com meu marido, que era pedreiro. Fui pedreira também, lavadeira, faxineira. Fazia esses tipos de coisa. Foi por aí que arriei minha vida”, diz ela, aposentada por invalidez após o diagnóstico, no ano passado, de doença renal crônica. “Sinto muitas dores na perna, e elas ficam dormentes e minha pressão cai.” Chegava ao fim do ano de 2018 quando sentiu as primeiras arritmias cardíacas, reflexos de um coágulo no coração. Na véspera do último Natal, ela chegou a ser internada, depois de sofrer um desmaio em plena Avenida Rio Branco. Assinou um termo de responsabilidade e saiu do hospital para entregar os presentes que já havia comprado. Em janeiro, começou o tratamento, finalizado a tempo da festa deste ano. “Meu coração é muito feliz pelo que eu faço, por isso não vai parar agora, não quer parar agora”, defende ela, cujo marido, com quem vive há 42 anos, também aposentou-se por invalidez, diagnosticado com uma neuropatia resultante de uma diabetes severa. Mãe de três filhos – 36, 39 e 42 anos – e avó de sete, tendo o caçula 9 anos, Margarida segue as restrições médicas de não tomar refrigerantes nem comer doce. Só resiste a ficar em repouso.
Natal é coração
Todos os dias nos últimos meses do ano, Margarida sai de casa, no Bairro Monte Castelo, para vender canetas, bolos e doces, o que lhe permite comprar um pouco dos brinquedos. “Só pego na caneta para vender. Nunca gostei de escola”, ri. Na bolsa carrega uma placa, onde explica seu projeto. Sentada no Parque Halfeld, numa curta pausa de suas andanças, ela mostra fotos e recortes de jornais sobre as doações em anos anteriores. No passado, ela saía nas ruas vestida de Mamãe Noel. Hoje, pelo calor intenso e com a saúde frágil, leva consigo apenas o gorro vermelho. Nas festas, costuma vestir todo o traje, junto de Ninito, seu Yorkshire, que ela veste de Papai Noel. Há uma semana para o Natal, ainda faltavam 500 brinquedos, pães e salsichas. Margarida seguia vendendo suas canetas e pedindo doações, numa fé em nada religiosa. “Sou católica, mas não sou muito frequentadora, mas no dia que me dá na telha ir na igreja evangélica, eu vou”, diz, parando rapidamente para atender um telefonema no aparelho velho. Pode ser uma doação, explica. “Nem telefone eu tenho. Estava construindo e vendi meu telefone para pagar o pedreiro. A gente vive só com a aposentadoria, que é menor que o salário, porque a gente toma remédio, paga aluguel, e ainda fizemos um empréstimo para pagar exame. Mas Deus multiplica, menino”, assegura. Ironicamente, a ceia de Margarida é em casa, um jantar como todos os outros. Meia-noite ela e o marido já estão dormindo. No dia 25, os filhos costumam visitar. “Faço o básico. Quero ter para as crianças. De Deus, eu quero saúde. Mesa de natal, para mim, não faz falta”, diz, ensinando que a data, na verdade, é um convite para a partilha.