A mecânica dos sons do luthier Maninho
Alexandre de Andrade abandonou a carreira musical e hoje toca para afinar os instrumentos que cria
Entre a precisão de diferentes técnicas e o lirismo de distintos acordes, Alexandre de Andrade esculpe seu ofício. Basta um pedaço de madeira para que escute os sons que resultam do equilíbrio que faz entre invenção e cálculos. “A madeira muda tudo”, conta. E logo repara. “Mas luteria não é voltada só para a madeira. Tem que entender um pouco de muitas áreas. Tem que saber manusear instrumentos de precisão. Tem que entender de pintura, para saber qual tinta e verniz devem ser utilizados com determinada madeira. Tem as partes elétrica e eletrônica, hoje em dia superevoluídas. É preciso saber a espessura, a marca e a qualidade do fio, porque ele influencia no som. Tem instrumentos hoje que a tarraxa já é automatizada e basta passar a mão nas cordas e a guitarra já afina”, completa o homem de 47 anos, apelidado desde a infância como Maninho, muitos profissionais em um só. “O luthier passa por várias áreas. O tempo e a necessidade ensinam a buscar esses conhecimentos.”
Filho de um encarregado de obras e de uma dona de casa, o marido da professora Silvânia, pai da pequena Maria Clara, de 12 anos, e irmão de um profissional da contabilidade envolveu-se com a música ainda menino. Com o tio paterno Tomzinho. “Ele fabricava e restaurava. Trabalhei com ele durante um tempo, e foi o início da minha aprendizagem. Comecei a me interessar e me apaixonei, tanto por criar, construir, quanto por pegar um instrumento feito há algumas décadas e colocar para funcionar novamente. Meu tio parou e eu dei prosseguimento, desde meus 18 anos”, conta ele, que precisou largar a noite, onde começou a tocar baixo profissionalmente aos 16. “Não dava para conciliar”, comenta Maninho, 47 anos, que assumiu o ofício do tio que, por sua vez, abriu um estúdio em casa, abandonou a luteria e hoje atua como produtor. “Ele tem um violão e uma guitarra que fiz para ele.”
O timbre das árvores
“Esse corpo aqui é cedro rosa, na parte traseira”, aponta Maninho, mostrando o corpo de uma guitarra em produção, pendurada no teto da casa onde vive, no Bairro Santa Luzia. A oficina ocupa a garagem (com equipamentos agigantados e barulhentos) e uma pequena sala com dois pavimentos no pátio do prédio onde reside ele, sua esposa e sua filha, além dos pais e do irmão. No espaço de trabalho, ouvem-se apenas os sons da lida. Uma lixa aqui, um corte acolá. É preciso ouvir o que cantam as madeiras. “A parte de cima do braço é mogno. A parte da frente é abeto alemão. E essa escala é de jacarandá nacional”, continua a demonstrar, com a guitarra em mãos.
“O grande pulo de quem fabrica um instrumento de cordas é a madeira, porque cada uma dá uma sonoridade diferente. Tem que saber qual madeira vai atender o cliente. Porque se o cara quer um violão mais grave, para ele o jacarandá, que é o top, não vai resolver, já que fica mais agudo. Teria que trabalhar com cedro ou imbuia. E cada madeira tem uma textura diferente, e o tempo ensina a forma de trabalhar com cada uma. O modo de lixar funciona melhor num sentido determinado. Tem madeiras que só de ver o veio percebo que não vai atender. Fora que existe um tipo de madeira que é para uso com verniz, outro tipo que é para a pintura. E mesmo sendo da mesma espécie, cada árvore tem um tempo de corte, uma largura e espessura diferentes. Quanto mais velha a árvore, melhor a madeira. Porque quando a árvore vai crescendo, a fibra vai se fechando e ficando mais lisa. Num violino, por exemplo, é mais difícil ver o veio da madeira, porque é proveniente de árvores centenárias”, explica Maninho, com o encanto de um iniciante e a bagagem de um veterano.
A física dos corpos
“Um instrumento, quando vai ser fabricado, tem que respeitar um ponto de equilíbrio que não incomode o músico. Não pode puxar para baixo ou para cima”, conta Maninho, logo apontando para uma fotografia no mural da oficina com o registro de um de seus maiores desafios. Um baixo com dois braços, duas captações e duas saídas independentes. Nas imagens ao lado, o luthier aparece na estrada, montado numa bicicleta. “Tudo é muito preciso. Exige muito raciocínio e concentração, cansa muito a cabeça. Tem que ter uma válvula de escape. Aí eu curto pedalar, dia sim, dia não. Nos finais de semana, dou uma esticada, desço até Levy Gasparian ou Simão Pereira”, relata ele, em cuja rotina um erro pode representar uma perda irreparável.
“Uma escala com erro, por exemplo, não permite afinar o instrumento.” Contudo, não são apenas objetividades que encontra. “Quando encomendam um instrumento, dizem o que querem e permitem que eu trabalhe com a minha criatividade.” Às vezes, no entanto, a provocação é a cópia mais fiel. “Esse baixo acústico aqui levou um tombaço”, diz ele, mostrando um antigo contrabaixo. “Vou refazer a parte de trás do braço todo, que está inutilizada. A única coisa que vou aproveitar é a escala, em ébano, que é uma madeira africana. Ela já tem essa tonalidade escura e é muito dura, não tem desgaste, pode ver que a corda do contrabaixo é mais grossa e não desgasta.”
O amplificador pessoal
“O processo começa com o corte da madeira”, detalha Maninho. “Depois vem a selagem, a secagem, a lixa, a selagem novamente e, depois, aplico o pigmento e o verniz. Não são processos rápidos, tem o tempo de cura da madeira. Quando não é acabado com verniz alto brilho, acaba sendo mais rápido, levando uma média de um mês. É um serviço minucioso e de qualidade, não é feito em linha de produção”, pontua o luthier, que chega a levar meses na confecção das peças. “Todo instrumento quando é entregue, vai com a parte elétrica montada e ligada, e a regulagem também vai pronta. Só ligar e tocar”, acrescenta ele, músico nas finalizações de seus trabalhos. “Em casa eu toco, mais para relaxar, porque a música é prazerosa. E é legal tocar porque cada dia tenho um instrumento diferente, com uma nova sonoridade”, diz. E o que ouve o luthier? “Escuto de tudo, mas, particularmente gosto muito de música brasileira: MPB, rock e o jazz que vem de fora e o pessoal faz uma pegada nacional. Prefiro nossos artistas. Daqui, cito de cara o Dudu Lima, que conheço há mais de 20 anos. Também gosto muito do Djavan, Jorge Vercillo, Lenine, Nando Reis”, responde, certo de que entre a precisão de diferentes técnicas e o lirismo de distintos acordes existe o inominável fruto da emoção.