As batidas do Coração do Bacharéis
A toada de Paulo Cezar Calichio, cujo apelido foi dado por uma vizinha no bairro onde ele ajudou a fundar o Partido Alto e se envolveu com o samba de raiz
“Eu canto samba, por que só assim eu me sinto contente. Eu vou ao samba, porque longe dele eu não posso viver. Com ele, eu tenho de fato uma velha intimidade, se fico sozinho, ele vem me socorrer.” Paulo Cezar Calichio canta samba porque é o que lhe vai no coração. “O samba trouxe algo muito melhor que o dinheiro”, comenta o homem de 66 anos, que canta Paulinho da Viola e sua canção “Eu canto samba”, e também outros bambas. “O que fazem Mano Décio da Viola, Nelson Cavaquinho, Cartola, Delegado, Wilson Moreira, Nei Lopes, Elton Medeiros, Noel Rosa, Pixinguinha é o que há de mais sagrado. É o que cantamos no Bacharéis do Samba”, conta o vocalista e líder do grupo, já composto por 12 elementos, entre teclado, sopro, contrabaixo, bateria, “uma superbanda”, hoje formada por Coração (voz e reco-reco), Nelsinho (voz e pandeiro), Cezar Ferreira (violão de sete cordas), Alexandre (cavaquinho) e Miguel Lobo (surdo). Paulo Cezar é Coração. “Uma senhora chamada Dona Lourdes, minha vizinha, tinha o filho Júlio César, com a mesma idade que eu. A gente brincava. Éramos moleque, com 5 ou 6 anos de idade. E ela chamava: ‘Ah meus dois corações. Um coração branco e outro coração preto’. Pegou em mim o apelido. Nele não”, ri. Como sua esposa lhe chama? “De Coração”. E as filhas (tem duas, Renata e Ana Paula)? “Até os netos”, responde o avô de Thaís, com 19, e Tales, 12.
‘O samba é alegria, falando coisas da gente’
“Esta aqui é a escola de samba mirim mais antiga do Brasil! Inocentes Somos Nós!”, aponta Coração, mostrando uma fotografia de 1958, único ano em que a tal escola mirim desfilou. “O fundador foi o Balbino José dos Santos, que era metalúrgico, juiz de futebol e criador dessa escola. Dessa garotada da foto, estou eu aqui, o Sebastião, o Velho, com máscaras devem ser o Zequinha e o Niltão. Daqui nasceu o Partido Alto”, orgulha-se ele, filho do samba. “Minha mãe foi costureira da escola, e meu pai trabalhava no apoio, empurrando carro. Antes, meu pai saía no Rancho Quem Pode Pode, com minha mãe. Meu avô era o presidente do rancho. Minha família sempre foi envolvida com carnaval”, recorda-se o homem que, na Partido Alto, foi secretário, diretor de patrimônio e mestre de bateria, só tendo tirado dez. Nota dez! “O (bloco) Império do Morro já tinha acabado. O (bloco) Pastorinhas a gente nem conheceu. Então queríamos ter um bloco lá em cima. Um dia, na esquina da Olegário Maciel com a Espírito Santo, juntou uma galera. Alguns saíam na Feliz Lembrança, outros, na Juventude Imperial, e outros, na Turunas. Juntamos e decidimos fundar a Partido Alto. O Niltão foi quem escolheu as cores e o nome. Fui testemunha.” Da turma hoje, apenas três estão vivos: ele, Nelson Papinha e Ciro Romão, todos saídos da escola. “Virou balcão de negócios. A escola aqui em cima era um congraçamento de famílias, tanto das classes mais humildes quanto das mais abastadas. Quando a escola foi para a Avenida Brasil, quebrou um elo, perdeu a identidade. Me afastei em 1981. Antes não tinha sede, não tinha quadra, ganhava carnaval e não ficava devendo ninguém. Quando mudou de lugar, passou a ter sede, perder carnaval e ainda a dever”, critica, acidamente, como o bom sambista que é. “O samba que vivi na minha mocidade é muito diferente do que campeia Juiz de Fora hoje. O samba que conheci acabou, porque onde entra muito dinheiro a coisa perde a essência.
‘Se você anda tristonho, no samba fica contente’
O samba ao qual Coração foi apresentado ainda muito pequeno carregava consigo o cheiro da casa, dos pais, dos irmãos, da família que lhe serve de alicerce. “Fui criado por um descendente de italianos. Eles se chamavam Fábio e Cirene e me adotaram, com 11 dias de nascido, porque não tinham filhos, mas, oito meses depois, minha mãe ficou grávida. O melhor amigo que tive foi meu pai. Ele nunca admitia que alguém falasse que eu era filho adotivo. Lembro-me de um dia: Eu trabalhava na Fábrica São Vicente, e ele já era antigo lá, eu tinha 14 anos, e estávamos andando de braços dados quando um cara perguntou: ‘Esse daí que é seu filho adotivo, Fábio?’. Ele respondeu: ‘Não tenho filho adotivo não! Esse é o meu filho! Para que ficar pondo adjetivo?'”, lembra o filho de uma senhora hoje com 91 anos e do pai cuja despedida já completa 23 anos, irmão de Regina, Rogério, Carlos e Tânia. “Meus pais moravam no Mundo Novo, mas, com 1 ano e pouco, eles se mudaram para a Praça do Cruzeiro, na Rua Redentor. Ali fui criado, jogando bola na Academia, fiz minha primeira comunhão na Igreja São Sebastião e conheci o samba”, acrescenta o primo em primeiro grau de Joãozinho da Percussão. “Ele foi o primeiro cara que me levou para o palco. Eu tocava percussão, e ele me chamou. Dali gostei do negócio”, brinca Coração, convidado, em 1974, para integrar o grupo Black Samba Show. “Quando saí, fui convidado pelo Bacharéis do Samba, há 41 anos. Mas nessa época, eu só tocava percussão, e o líder era o Mestre Cocada. Um dia fomos tocar em Barbacena, e o cantor do conjunto, o Zezé do Pandeiro, não apareceu. Só tinha um cantor. O Cocada, então, perguntou para mim e para o Nelsinho se cantávamos. Dissemos que sim, e o show foi um sucesso. Ficou decidido que o conjunto não teria apenas um cantor. Começamos a ensaiar na barbearia do Cocada, na Associação do Crédito Real, e ali me despertou a veia de músico, de cantor. Com o tempo, o Cocada se retirou, e ele passou para mim a liderança do grupo.”
‘Segure o choro criança, vou te fazer um carinho, levando um samba de leve, nas cordas do meu cavaquinho’
Paixão, o samba sempre ocupou o coração de Paulo Cezar, aposentado em 1994 como Sargento Calichio. No Exército, entrou como soldado, aos 19, após já somar uma década de trabalho. “Comecei aos 9, como auxiliar de sapateiro. Eu engraxava sapato, comprava material para o sapateiro e entregava sapato na casa das pessoas”, lembra. “Éramos muito pobre. Morava num barraco de zinco na Praça do Cruzeiro. A primeira casa de alvenaria da nossa família fui eu que dei. No Exército, fiz uns cursos, ganhei bastante dinheiro e fui promovido a cabo. Na época, dez foram promovidos, desses, só eu não comprei carro. Juntei dinheiro e construí uma casa em três meses, com três pedreiros e cinco serventes”, orgulha-se ele, que aos 25 anos casou-se, mas logo em seguida, nascidas as duas filhas, divorciou-se. Adido no Rio de Janeiro entre as décadas de 1980 e 1990, regressou e conheceu Maria Lúcia, com quem está casado há 27 anos. Por quase duas décadas, o casal morou no bairro Santa Cecília e, há seis, mora no Furtado de Menezes, próximo da quadra da Juventude Imperial, cujos samba são entoados por Coração e Nelsinho no Bacharéis. “Canto samba do Flavinho da Juventude, meu parceiro, e sou fiel a ele. Estudamos juntos no Grupo Central. Ganhei samba com ele no Acadêmicos do Manoel Honório e na Juventude. Sempre que posso, o visito, e todos os anos fazemos show na semana da Consciência Negra promovida por ele”, conta o homem que durante a conversa enumera outros nomes, como o dos parceiros de banda, do também músico Márcio Gomes e do amigo Roger Resende, o cara que, segundo ele, num tombo, foi capaz de levantá-lo. “Há muitos anos eu estava desgostoso com muita coisa que já tinha me acontecido. A gente tinha ganhado um samba na Portela, e os compositores não me pagaram. Fiquei muito decepcionado, e ele me ajudou a retornar”, comenta o compositor, que diz ouvir rock, bolero e sertanejo de raiz. Prefere, contudo, os sambas que canta todo terceiro domingo do mês, às 19h, no Clube Círculo Militar e, quinzenalmente, aos domingos, às 16h, no Bar do Quebra-Mole, no Bairro Santa Luzia. Um dos mais longevos grupos da cidade, com mais de meio século de história, os Bacharéis do Samba, donos de uma agenda já ocupada em 2018, agora sonha em gravar um primeiro disco. “Há muito tempo eu escuto esse papo furado, dizendo que o samba acabou. Só se foi quando o dia clareou.”