Luto pela gastronomia brasileira
Estava revisando meu texto para a coluna deste domingo, quando resolvi dar uma desconectada rápida e me deparei com o posicionamento de uma das mais conceituadas revistas de gastronomia do Brasil, a respeito do uso de trabalho análogo à escravidão para a colheita de uvas no Rio Grande do Sul. Prontamente, fechei o arquivo que escrevia, abri um em branco e comecei a escrever este texto.
Logo eu, que sempre levanto a bandeira de que a gastronomia precisa ser antropológica, que devemos sempre pensar de onde a comida vem, para onde ela vai, e toda a relação do homem com a alimentação de uma forma geral, não poderia nunca deixar de me manifestar. Me omitir nesse momento, diante a esse espaço que tenho, seria, além de vergonhoso, um ato de extrema covardia.
Para quem ainda não entendeu o que de fato está ocorrendo, vou tentar resumir: trabalhadores foram contratados para laborar na colheita das uvas em Bento Gonçalves por uma empresa terceirizada que prestava serviços para as maiores vinícolas da região, com a promessa de carteira assinada, alojamento, boa comida e excelente condições de trabalho.
Enquanto, na verdade, o que receberam foi comida estragada, alojamento sujo, jornada abusiva, além de choques elétricos, spray de pimenta, ameaças de morte, eram obrigados a comprar comida em um único local com preços superfaturados e desconto salarial, e quando queriam se desligar, escutavam que precisavam pagar as dívidas por essa hospitalidade toda.
“Ah Fábio, mas era uma terceirizada, não tem nada a ver com essas vinícolas.” Sério? Como empresas desse porte não acompanham a colheita e a entrega dessas uvas? Como empresas deste tamanho não notam nada errado com esses trabalhadores? Na verdade, o que importa para essas empresas, é o lucro, e nada mais que isso. O que eles realmente valorizam é ver o produto deles na prateleira, a marca sendo mencionada nas redes sociais. Não se importam nem um pouco com quem manipula a principal matéria prima deles.
Apesar da indignação, sou contra o boicote a essas vinícolas, são vinícolas centenárias que já contribuíram muito pela gastronomia nacional, mas também sou contra a impunidade. Todos os responsáveis devem ser punidos. Os trabalhadores devem receber o que lhes é de direito, as condições de trabalho devem ser fiscalizadas por órgãos competentes. Um boicote a essas empresas não só afetaria outras famílias inocentes envolvidas diretamente na produção desses vinhos, mas também parte do turismo dessa região, que envolve grande parte da população e é uma das principais fontes de renda.
A terceirização deve ser feita de maneira responsável e o contratante não pode simplesmente “lavar as mãos” e virar as costas. Fatos hediondos como esse precisam acabar. Estou em luto pela gastronomia brasileira, mas também luto por essa gastronomia. Para que, em breve, as pessoas entendam que a relação do homem com a comida vai muito além de encher barriga. Que uma simples garrafa de vinho tem muito mais que tanino, álcool e aroma, tem a vida de muita gente que trabalha com amor para entregar aquele produto. Tem histórias, vivências, saudades. Quando começamos a olhar por esse lado, começaremos a ver o que de fato a gastronomia é.