Como fazer inimigos e odiar pessoas
É possível salvar a democracia do tribalismo que a consome? É possível reduzir o teor explosivo das disputas eleitorais, aproximando-as mais de discussões sobre políticas públicas e menos sobre diferenças insuperáveis de identidade ideológica? Se quisermos entender melhor o difícil momento por que passamos, temos de refletir sobre a radicalização da política. E as redes sociais estão no centro desse fenômeno.
As grandes empresas de tecnologia são atores políticos fundamentais do nosso tempo. Se elas ganham dinheiro com o maior grau de engajamento de usuários, é natural que deixem a briga rolar. Barraco dá Ibope – e não podemos ser ingênuos quanto a isso. Anne Applebaum explicou bem em seu artigo para a revista “The Atlantic”: “(…) a conversa [on-line] é governada por algoritmos projetados para captar a atenção, colher dados e vender publicidade. As vozes dos participantes mais raivosos, emocionais, divisivos – e freqüentemente os mais enganosos – são ampliadas”. É isso: o circo virtual tornou-se o pão nosso de cada dia. Só que doamos o pão (dados e tempo) para que as empresas lucrem com ele. Isso num ambiente virtual onde a anonimidade insufla robôs, perfis falsos, xingamentos e até crimes – e onde os critérios dos algoritmos são um segredo guardado a sete chaves.
Políticos espertos descobriram esse potencial e exploram-no com maestria, apoiados por estudos que mapearam os pontos sensíveis de seus eleitores. Jonathan Haidt já mostrou que existem cinco fundamentos morais que podem ser manipulados pelo discurso político: santidade, justiça, lealdade, autoridade e cuidado. Progressistas têm alta sensibilidade e reagem quando percebem ameaças à justiça (distributiva ligada à igualdade) e ao cuidado (com os menos favorecidos na escala social), não apresentando respostas tão altas aos outros itens. Já conservadores reagem a ameaças a todos os fundamentos: à justiça (vista como meritocracia), lealdade (ao país, à igreja etc), autoridade (seja familiar, presidencial ou policial), santidade (o adversário quer degradar a pureza de nossa sociedade, como a família tradicional) e cuidado (com as crianças, por exemplo). Com um bom trabalho para instigar os medos certos no público específico, a resposta será dada. Por aí já se descobre a razão por que não param de surgir teorias conspiratórias: elas apertam o botão do pânico, como se o adversário fosse o inimigo que ameaça o centro da minha existência.
A tecnologia potencializa esses medos. Mas, quando olhamos para a teoria política, não há nada de novo. Carl Schmitt, o jurista alemão, um dos maiores adversários do liberalismo do século passado, parece mais atual que nunca: “todo conceito político é um conceito polêmico. Ele tem em vista um inimigo político”, ele escreveu. Na sua teoria, o outro se torna inimigo quando representa a negação de tudo o que sou. Se na moral a distinção se dá entre bom e mau e na estética entre beleza e feiura, na política tudo se reduz à distinção entre amigo e inimigo. Schmitt detestava a moderação e a transigência dos estados liberais, pois a política mora na intransigência da inimizade política. “Distinguo ergo sum”, ele resumiu.
Então estaremos condenados a viver nesse mundo que combina Schmitt com Mark Zuckerberg? Espero que não. Podemos trabalhar para que as instituições se tornem um campo de construção (não explosão) de pontes. A governança das grandes empresas de tecnologia também deve ser revista para que não sejamos meros espectadores passivos de um “feed” de notícias selecionado por algoritmos cujos critérios desconhecemos. Se um algoritmo escolhe minhas notícias, que eu saiba como o faz e por que o faz, sem ser manipulado por “bots” que não tem sequer identidade real.
Enfim, se quisermos viver em bolhas que apenas confirmam nossas crenças e repulsas, que ao menos conheçamos as cordas invisíveis, tecnológicas e teóricas, que regem o teatro virtual. Que não sejamos como Pinóquios invertidos, chegando ao fim da história como fantoches. Queremos e podemos ser sujeitos, não objetos, de nosso próprio destino.