Qual silêncio, o do Capitão ou o do General?
Pauta penal dos últimos dias: o direito ao silêncio. O motivo: decisão do STF que concedeu ao ex-Ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello, o direito de permanecer calado durante sua inquirição na CPI instaurada para apurar responsabilidades de agentes políticos nos dramáticos índices da Covid-19 no Brasil e por desvios de recursos públicos nesse contexto.
Há quem seja visceralmente refratário ao direito ao silêncio. Em 1999, em entrevista dada a emissora de TV pelo (então) Deputado Federal Jair Messias Bolsonaro, o parlamentar comentava o depoimento de Francisco Lopes, ex-presidente do Banco Central, à chamada CPI dos Bancos: “Dá porrada no Chico Lopes. Eu até sou favorável que a CPI, no caso do Chico Lopes, tivesse pau-de-arara(*) lá. Ele merecia isso: pau-de-arara. Funciona! Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso”.
Chico Lopes foi preso (sim, preso!) por invocar, na CPI, seu direito ao silêncio. “Brandura” imperdoável para quem, como Bolsonaro, queria pau-de-arara. Violência escancarada para quem conhece (e respeita) a Carta promulgada naquele mesmo Congresso, 11 anos antes.
O direito ao silêncio, consectário de franquia mais ampla, o direito à não-autoincriminação, está previsto na Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (art. 8.2, “g”) e no inciso LXIII do art. 5º da Constituição de 1988. Por aqui, teve forte inspiração na V Emenda à Constituição dos Estados Unidos (“No person […] shall be compelled in any criminal case to be witness against himself”).
Antes que o esquecimento me traia: é direito de todos – militares, civis, investigados (por quaisquer órgãos, inclusive CPIs), acusados, presos ou soltos. E é inútil aplicar-se a tática de se intimar alguém para depoimento “como testemunha” (que, por lei, deve dizer a verdade), para constranger um investigado/acusado a falar, quando lhe é dado, por lei, calar.
Não importa o rótulo, mas a essência: qualquer pessoa a quem se dirija indagação potencialmente autoincriminatória não está obrigada a “testemunhar contra si mesmo”, na expressão americana. Interrogatórios disfarçados de depoimentos testemunhais resultam em provas ilícitas, conforme tem reconhecido a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Na mão contrária, inquirições sobre crimes praticados por terceiros (e que, portanto, não resultam em autoincriminação) reclamam compromisso com a verdade.
Rigorosamente falando, aliás, a nenhum agente público é dado inquirir qualquer imputado sem, antes, informar-lhe claramente sobre seus direitos, entre eles o de permanecer calado e fazer-se acompanhar de um advogado. Trata-se de expediente nascido em precedente da Suprema Corte Americana (Miranda vs. Arizona), incorporado ao mesmo inciso LXIII do art. 5º da Constituição.
Portanto, acerta o Supremo Tribunal Federal ao conceder a Eduardo Pazuello aquilo que, rigorosamente falando, quem o concedeu foi a Constituição brasileira (e haveria de ser rotineiramente observado – em especial numa Comissão que opera sobre o mesmo chão de onde brotou a Carta de 1988). Mas temendo o banho como o gato que se escaldou, no pós-Chico Lopes, poucos são os que se aventuram a uma inquirição em CPI sem um Habeas Corpus preventivo.
Vale perguntar, entretanto: qual é o real direito ao silêncio: o do Capitão, debelado a pau-de-arara, ou o do General? E qual estaria em boa medida caso estivesse você nessa posição?
Aprendamos com Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “a grande conquista da razão no espaço da democracia moderna foi fazer as pessoas entenderem que a defesa do ‘outro’ significava a defesa de si mesmo e das regras do jogo, até porque nunca se sabe quem será o próximo a ser perseguido”.
As linhas do depoimento do General ainda não foram escritas, pois este texto é publicado bem no dia de seu depoimento. As da Constituição, todavia, estão entre nós há algum tempo. E nos servem para manter sepultado um passado que, a essa altura, o Capitão não desejaria rever na pele de seu General, seja com violência ou “brandura”.
(*) Pau-de-arara é um método de tortura física destinada a causar fortes dores nas articulações e músculos. Prática largamente empregada num tempo em que não havia Habeas Corpus que impedisse qualquer barbárie. Numa época em que militares eram mais interrogadores e menos interrogados.