A fragilidade nossa de cada dia
A pandemia nos recorda constantemente da fragilidade de nossa condição humana. Somada a ela, um cenário político e econômico conturbado em meio a uma avalanche de informações pessimistas deixa tudo mais incerto. Planejar a vida parece um desatino – é como se vivêssemos numa montanha-russa existencial.
Mas, ainda assim, queremos controlar o incontrolável. Martha Nussbaum, em sua obra “A fragilidade da bondade”, levanta três indagações em sua investigação ética (focada nas tragédias gregas) que podem ajudar a pensar na nossa sujeição aos riscos na busca por uma vida boa.
A primeira é: se planejarmos racionalmente nossa vida, quanto de amizade, amor, atividade política, apego a posses nos deixará abertos ao acaso? Todos esses “bens exteriores” podem certamente afetar nossa segurança, pois estaremos sujeitos à perda, ao abandono, à falta de controle daquilo que não depende somente de nós.
Em segundo lugar, Nussbaum pergunta: esses mesmos bens podem gerar, entre si, conflitos prejudiciais a nossas vidas? Pode ocorrer, por exemplo, que entre a amizade e o amor surja a exigência de escolha, o que nos afastará da vida pacífica que desejávamos.
E, por fim, a terceira indagação: ainda que os bens externos estejam sob controle, o que fazer quando ingovernável é a composição interna do ser humano? Muitas vezes, as partes irracionais da alma – as paixões, emoções, apetites e sentimentos – serão a fonte do risco e das mudanças.
Nossa vulnerabilidade acaba por nos fazer desejar uma vida imune às inseguranças e desgraças. E essa aspiração por um mundo sem riscos – projeto impossível – tem como um de seus pilares a expansão quase ilimitada na crença de que podemos controlar o impoderável por meio de nossas criações materiais e simbólicas. É óbvio que o ser humano conquistou enormes avanços civilizatórios que lhe trazem mais segurança hoje do que em qualquer outro momento da história. Mas, paradoxalmente, essas conquistas convivem lado a lado com uma inigualável intolerância ao risco. Quer um exemplo? Compare a criação de filhos hoje com aquela da geração de nossos pais e avós. Um simples urso de pelúcia vem com um livreto de instruções de segurança – com forte viés jurídico – que seria mais adequado a um artefato bélico.
“Viver é muito perigoso”, escreveu Guimarães Rosa. Vivemos sob o signo da imprevisibilidade, sempre em busca de erguer portos seguros de confiabilidade. O Direito entra aqui, pois permite que promessas sejam cobradas e exigidas, criando marcos de previsibilidade num mundo cheio de incertezas. O problema surge quando esse instrumento é corrompido pelo seu mau uso, como nos ensina Hannah Arendt: “quando se abusa dessa faculdade para abarcar todo o terreno do futuro e traçar caminhos seguros em todas as direções, as promessas perdem poder vinculante e todo o empreendimento acaba por se autossuprimir”.
É justamente o que vem ocorrendo hoje. Queremos tanto viver seguros que isso nos deixa inseguros. Em outras palavras: por desejar um mundo sem riscos, passamos a ver tudo como risco. E inseridos nessa cultura do medo, exigimos do relativo a qualidade do absoluto.
Não é de estranhar que vivamos num ciclo de expectativas irrealistas e decepções recorrentes – a segurança não deve ser o valor supremo a ser almejado.
Em vez disso, temos de voltar a experimentar o valor do risco e da coragem, tendo em mente que os infortúnios nos libertam do equívoco de acreditar que o mundo é guiado por nossa vontade. Estar expostos à possibilidade da infelicidade: eis a difícil arte que temos de aprender com as nossas fragilidades.