De Neymar a Gilmar
Não é difícil enxergar que vivemos em uma sociedade permeada pelo Direito. Por incrível que pareça, chegamos ao ponto de saber quem são os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), mas temos dificuldade em nomear os 11 jogadores da seleção de futebol. As perspectivas mudaram: a indiferença pelos jogos do time canarinho é inversamente proporcional às paixões demonstradas nos dias de julgamento no STF. Há quem aprecie vaiar o Neymar, mas o povo anda gostando mesmo é de xingar o Gilmar.
A liberdade que o Direito nos garante é algo positivo, uma óbvia evolução civilizacional, pois não precisamos apelar aos nossos instintos mais violentos para resolver as pendências e conflitos que nos perseguem – que o diga a mão invisível que tocou o ombro do Janot. Mas não raro essa liberdade jurídica resvala para a anomalia de uma vida que já não tem autenticidade, pois a pessoa só se vê como um ente com direitos que devem ser transformados em litígio. Ocorre, então, a submissão da vida a estratégias jurídicas, um mal do nosso tempo que empobrece as relações humanas e, por consequência, a própria política (que se vê judicializada).
O filósofo alemão Axel Honneth percebeu esse fato de maneira muito clara na sua obra “O Direito da Liberdade”. Segundo ele, se até a década de 1960 os sujeitos recorriam sobretudo a valores, normas e costumes comuns e compartilhados, “agora podem cada vez mais assumir, e de maneira recíproca, uma atitude estratégica, a fim de impor juridicamente seus interesses ameaçados”. E conclui que os indivíduos tendem a planejar suas ações do ponto de vista de suas perspectivas de êxito diante de um tribunal, perdendo o sentido para os assuntos e propósitos não sujeitos à articulação jurídica.
Além da filosofia, ninguém melhor do que a literatura para perceber essa patologia do nosso tempo. Milan Kundera, em seu livro “A Imortalidade”, diz que a luta pelos direitos perdeu seu conteúdo, até finalmente se tornar uma atitude genérica de tudo contra todos, uma espécie de energia que transforma toda a vontade humana em um direito. Não é de estranhar, portanto, que estejamos tão atentos ao STF, ao Código de Defesa do Consumidor, ao Código Penal e a tudo mais que nos situe nesse mundo da regulação. Discutir medidas econômicas do Poder Executivo no STF (em vez de realizar o debate político no Parlamento), achar que qualquer incômodo é dano moral ou ver improbidade em qualquer buraco de rua são todas diferentes faces do mesmo fenômeno. A totalização do Direito acaba por interromper outras vias de interação e solução dos conflitos. Teríamos deixado de ser pessoas, para nos tornar somente partes (de um processo)?
O bom uso da Justiça acabou se transformando no seu abuso, que leva à injustiça. “Summun jus, summa injuria”, diziam os romanos com toda a sua sabedoria prática – já na Antiguidade! Excesso de direito leva ao máximo da injustiça. O crescente poder de juízes e promotores, a oferta inesgotável de advogados ávidos por processos, tudo conspira para que a confiança excessiva no Direito se volte contra ele mesmo. E então, quando formos todos réus e tudo o que nos restar for ofender o juiz no meio da rua ou do Twitter, porque perdemos não só o processo, mas o respeito, descobriremos que nos tornamos cínicos antes de nos tornarmos justos. E o cinismo, como disse Oscar Wilde, é a capacidade de saber o preço de tudo, mas não perceber o valor de nada. Nem da Justiça.