Ganhar o dia
Minha mãe ligou a televisão. Acompanhava momentaneamente pela tela a cobertura em tempo real do sequestro de um ônibus no Rio e Janeiro, acontecimento lamentável que ficou marcado por absurdos. Em seguida, abriu as sugestões do navegador do celular. Amazônia em chamas. Incêndio com proporções inimagináveis, com efeitos nefastos. As cenas devastadoras de destruição causadas pelo fogo eram de tirar o fôlego e a paz. A maior riqueza do país queimando indefesa. Outra tela lembrava a São Paulo do dia anterior, coberta por uma nuvem escura, que fez da tarde uma noite de luto antecipada. A Amazônia derramava lágrimas de suas cinzas sob o marco do desenvolvimento. O lamento doído da natureza, negado pelas autoridades, se despejava sinistro e silenciosamente sobre os arranha-céus.
Como se manter inteiro diante de acontecimentos tão estarrecedores? Em algum momento, vi que ela tinha se afastado da televisão. Não escutava mais o que era dito. As palavras que narravam aquelas notícias já tinham feito efeito, porque os olhos dela agora vasculhavam o cômodo em busca de outro ponto para se fixar. A cabeça baixa, a expressão séria, me contavam sobre como a perplexidade a tinha envolvido. O silêncio dela é o mesmo que toma boa parte de nós em momentos difíceis. Procuramos mentalmente um porquê, ou um como, quem. É difícil encontrar respiros, ainda que inspiremos fundo.
Ela largou as telas, a TV e o celular. Abriu a janela lentamente, ficou espiando por algum tempo, vendo o movimento da vida acontecer lá fora. Para minha surpresa, se virou sorrindo. “Acabei de ganhar meu dia”, me disse animada. Quis saber imediatamente a causa daquela satisfação tão despretensiosa. Era manhã, horário de saída das escolas. Um grupo de crianças andava acompanhado por uma mãe. Eles seguiam juntos seu caminho. Antes de virarem a esquina, um deles se dispersou do que acontecia com o resto. Olhou para a janela, encontrou os olhos da minha mãe. Lançou a ela um aceno e um sorriso e seguiu. Aquele pequeno gesto de reconhecimento de humanidade a tirou do apocalipse no qual as notícias a colocaram. Algo se reacendeu nela. “Por um momento, eu só vi aquele sorriso. Ele me trouxe alegria, felicidade”, ela me explicou.
‘Ganhar o dia’, aquela expressão que eu não ouvia há algum tempo, serviu como uma luva para aquele presente singelo. Estamos perdendo tanto de nós diariamente e não temos como nos desligar dos capítulos tensos da nossa realidade. Mas quando conseguimos nos reconhecer em uma miudeza como essa, sentimos que ainda temos pelo que lutar. É hora de nos dedicarmos a não abrir apenas as janelas virtuais, mas também a descortinarmos a que nos faz olhar para os outros e nos curarmos.