O transporte é público. O corpo da mulher, não
Minha mãe sempre deu nó em pingo d’água. Deixou para trás uma infância e adolescência de dificuldades e privações lançando-se a todas as oportunidades de trabalho que surgiam. Foi sem ter finais de semana de folga por quase duas décadas que ela fez acontecer. Construiu uma vida confortável para si e sua família e hoje usufrui dos benefícios que o seu esforço proporcionou. Mas por conhecer o valor do dinheiro, ela não bota fora seus recursos. Sabe como ninguém economizar, principalmente quando está de olho em novas conquistas para o futuro. Não é perdulária, como eu. Às vezes, até exagera.
Dia desses fomos juntas ao médico. Eu estava sem carro, mas certa de que ela me levaria de volta para casa. Quando saímos da consulta, no Centro, perguntei onde estava o carro dela. No Bairro Bom Pastor, ela respondeu, informando que tinha feito o percurso bairro-centro de ônibus, pois assim economizaria o dinheiro do estacionamento.
– Mãe, não acredito!
– Uai, por que não? Acha que vou gastar R$ 30 à toa?
Minha mãe me convenceu que, de ônibus, pelo vão central da Avenida Rio Branco, chegaríamos em dois minutos ao local onde ela havia estacionado seu veículo. Subimos juntas no coletivo que percorreria a avenida projetada no governo Mello Reis, na década de 1970, e que até hoje é o principal ponto de ligação entre a região Nordeste e Sul da cidade. Quando entramos, um idoso de cabelos grisalhos e óculos de sol espelhado já estava lá dentro e logo começou a puxar papo. Minha mãe ficou na parte da frente do ônibus, e eu me encaminhei para a de trás, porque tinha que passar pela roleta. O homem me seguiu, embora não precisasse pagar passagem.
Como o ônibus estava cheio, fiquei de pé, em frente a duas mulheres que conseguiram lugar para assentar. Uma delas estava acompanhada de sua filha pequena. A outra passou boa parte do percurso tentando me dizer alguma coisa. As duas cochichavam. Já o homem continuava rodeando. Acendi o sinal de alerta, porque aquele cerco começou a me incomodar. Para impedir que ele se aproximasse fisicamente de mim, não fiquei de costas para ele. Fiquei de lado, olhando para ele, pronta para uma reação imediata, caso tentasse algo.
Ao perceber minha reação, ele se afastou. As duas mulheres que estavam próximas a mim respiraram aliviadas.
– Ainda bem que você reconheceu ele, disse a mais velha.
– Não faço a mínima ideia de quem ele é, respondi.
– Nossa, quando você o encarou, nós achamos que já soubesse que ele molesta as passageiras nessa linha. Já abusou de várias mulheres, aproveitando-se delas durante o trajeto.
A informação delas confirmou a minha suspeita sobre a intenção daquele sujeito. Felizmente, eu estava atenta, mas perceber o quanto as mulheres são vulnerabilizadas no transporte público me deu uma tristeza imensa. É uma violência sem tamanho ficarmos à mercê de indivíduos que usam da precariedade dos serviços públicos e da superlotação de trens, metrôs e ônibus para abusar sexualmente das passageiras. Recordei os episódios recentes no país nos quais as vítimas gritaram por socorro, embora não tivessem conseguido impedir a ação dos autores.
Todas nós, em algum momento da vida, já sofremos ameaças de violação da nossa dignidade. Todas. Tenho certeza que as passageiras da linha Avenida Rio Branco que foram tocadas sem o consentimento delas por aquele homem seriam capazes de reconhecê-lo. Por vergonha, elas não registraram ocorrência. Silenciar é dar passe livre para que ele continue agindo. É contribuir com o surgimento de novas vítimas. O medo que paralisa alimenta injustiças. Quem molesta precisa de tratamento e responsabilização. Quem é molestado necessita de acolhimento e de uma rede de serviços capazes de restaurar a autoestima destruída. Relações não consentidas precisam ser denunciadas. Quem enfrenta a própria dor não faz isso por si só, mas por todas as mulheres.