Lembrou-se da canção diz haver “sempre um lado que pesa e outro lado que flutua”. E pensou no quanto estava como o título daquele amontoado de versos musicados, “crua”. Bem ali, sozinha, no pequeno apartamento de classe média em que podia viver resguardada em sua branquitude. Livre para se preocupar excessivamente com o que quer que viesse à cabeça, já que não tinha atribulações como a falência, a exposição ao letal, a sobrevivência, enfim. Não podia se livrar, contudo, do que sentia. Não mais, ao menos.
Embora ainda trabalhasse entretelas, não precisava mais se furtar de chorar nas ruas com medo do julgamento alheio – quem nunca? Não havia mais qualquer necessidade de estar plenamente funcional e apresentável durante oito horas por dia quando a webcam de resolução duvidável conseguiria escamotear os mínimos sinais de estafa, saudades, solidão, raiva, medo, tristeza profunda ou qualquer outro ao qual a vida social impõe o abafamento. Tampouco tinha a possibilidade de enterrar ou deixar derramar tudo que sentia feito cachoeira, numa pororoca de lágrimas e álcool na mesa de um bar. Agora, ao contrário, todo sentimento, dos melhores aos piores, vem em gotas tão constantes quanto pão-duras, pingando len-ta-men-te ao longo de um dia inteiro, como se diz que fazem em torturas chinesas.
Tudo que restava era sentir, tanto a agonia triste de viver sem vislumbrar futuro, que batia sem aviso no meio da tarde (ou da manhã, ou da noite). Ou o acolhimento mediado por bytes, que outrora passaria batido, mas agora envolvia feito aquilo que se lembrava sob o nome de abraço. Tudo agora transborda e deságua, arrombando muros de contenção que mais se assemelham a uma barreira de papel sulfite. Pequenas grandes tragédias que abalam em nada um mundo em pandemia, mas que implodem, dia a dia, a vida -ironicamente – privilegiada entre quatro paredes. Só para começar tudo do mesmo jeitinho na manhã seguinte.