Pela família
Nunca se ouviu tanto falar em família como no último domingo, na votação do impeachment na Câmara, prova do esvaziamento da discussão que se travou na Casa, que hipocritamente teimam em repetir ser “do povo”. “Pela família” se agradece em preces que antecedem as refeições e orações precursoras do sono, para quem tem religião. Também por ela devem vir os agradecimentos em convites de formatura, em cartões de Natal, em momentos difíceis em que obtivemos apoio e naqueles de celebração em que tivemos acolhimento.
Justamente “pela família”, milhões de trabalhadores deixam de conviver com ela e passam o dia esgotando-se fisica e mentalmente para prover seu sustento, sabendo que o que recebem em troca não é justo, compatível e, incontáveis vezes, suficiente. “Pela família”, e pelo direito de ser uma, tantos lares que fogem da tríade pai-mãe-filhos sofrem preconceito, violência e execração de direitos básicos. E é por ela, a família, que pedem aqueles que nunca tiveram a chance de pertencer a uma. “Pela família, com Deus, pela liberdade”, marcharam mais de um milhão de pessoas em 1964, e essa história a gente sabe como acabou (acabou?).
“Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula.” Foi por eles que Jair Bolsonaro exaltou, “a memória docoronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”. Ustra, que torturou mulheres grávidas e as separou de seus filhos quando eles nasceram. Que levou crianças para verem seus pais nus, cobertos de sangue, vômito, urina e inconscientes. Não sou eu que estou dizendo. Pergunte a Maria Amélia Teles. Ou a seu filho, que a viu em cárcere quando criança e não reconheceu a mãe, com o rosto desfigurado de tanta porrada. “Por Deus, acima de tudo”, arrematou “Bolsomito”, e eu, que sei quase nada de qualquer religião, tenho certeza absoluta que não há divindade ou fé que compactue com a dizimação da vida e as atrocidades vociferadas pelo parlamentar. Seguindo, obviamente, o DNA, Eduardo Bolsonaro, o filho, falou “em nome de Deus e da família brasileira.” “Família, família”, que não só “janta junto todo dia”, como diriam os Titãs. Em crimes como violência, estupro, e assédio, o agressor é, numa porcentagem absurda das vezes, conhecido da vítima, não raramente sendo da – pasmem! – família.
“Pela família”. Mas antes de tudo, a “minha família”. “Minha mulher que luta pela vida”. “Meu filho Breno”. “Minha mãe negra Lucimar”. “Minha neta Ana, que está fazendo aniversário hoje”. “Desculpe, esqueci de um dos meus filhos, é por ele também”. O que a gente viu no domingo foi um circo de vaidades, uma profusão infindável de “meu”, “meu”, “meu”, em um lugar onde o coletivo devia imperar por supremacia. Enquanto os “varredores da corrupção” forem motivados pela lógica “farinha pouca, meu pirão primeiro”, não há qualquer chance de que a esperança, outro clichê tão gasto no plenário, volte a dar as caras por aqui. O Brasil não vai a lugar algum enquanto tanto se falar em família, numa alusão claramente falsa à coletividade, mas querendo dizer, lá no fundo, a “famiglia”.