Quarentena
Faz alguns dias agora que o contador de passos que integra o tecnológico sistema operacional de meu celular nem tão novo assim marca apenas a curta distância entre os cômodos espremidos do meu charmosinho apartamento. Faz sol lá fora, mas a grande ocupação urbana me fez morar num desses apartamentos de fundo em que a vista, de um lado, é um barranco com alguma vegetação, e a outra, o interior do próprio prédio. (O que acusticamente também me faz ser um tanto invasora da vida dos vizinhos que falam alto demais). Sei que o sol está lá fora, como todo mundo que amo e está em um outro dentro – ou pelo menos assim espero. Aqui dentro, estamos eu e a gata, que está sempre por perto, apesar de ora se incomodar visivelmente com minha inevitável presença no espaço em que roubo sua felina solidão diária agora, afastada do meu ímpeto rotineiro de querer andar mais depressa do que o tempo. Agora parei. O tempo segue, sempre me fazendo de besta: às vezes, parece nem andar; outras, quando vi, já foi-se um dia.
Tenho remado com minha canoinha na contramaré da tsunami de notícias, com um sucesso que oscila entre pouco e nenhum. Mas tenho conseguido continuar remando, ainda que de tempos em tempos fique à deriva, paralisada, com os braços doendo. Penso em quem não pode se refugiar entre portas e não tem opção senão ir à rua e respirar um ar potencialmente letal. Penso em quem falta o ar ao pensar nos códigos de barra que não param e não pararão de chegar. Penso em quem se fecha não no apartamento, mas em seu próprio umbigo. Penso em quem tem falta de tudo, para quem o resto do mundo lavou as mãos e, na perversa ironia da vida, agora falta a água para que possam justamente fazer o mesmo, como ordem absoluta de sobrevivência própria e alheia. Penso no quanto estamos sós, não por estarmos em confinamento, mas por não termos qualquer respaldo de quem brinca de reger um país de proporções continentais. Penso que sou egoísta também, e que só penso tanto por me sobrar tempo. Penso em filmes com finais apocalípticos. Penso em suas trilhas sonoras quase sempre cafonas. Penso que estou pensando demais. Trabalho. Depois leio um pouco, ou assisto alguma bobagem em streaming, ou me exercito no meio da sala sob o olhar julgador da gata.
Não me sinto só – embora isso não seja o que importe. Encontro o amor ainda que entretelas, devidamente higienizadas, na hora do dia em que queira. Nas que me mostram palavras que me mantém como ser social. Nas caras que vejo e que veem a minha. Nas que exibem roteiros fictícios que me ejetam da grande esquete de improviso em que se tornou a realidade. A cantora que agora está aos prantos – como nós, ou parte de nós, algumas vezes ao dia ou nenhuma – versa que “resiste o amor depois do horror”. Mesmo no meu pessimismo inveterado, vivo uma vida que me respalda o suficiente para assim acreditar. Ouvi panelas batendo esses dias, ouço o temido vento carregando sabe-se lá o que, ouço umas poucas crianças gritando e ouço um vizinho velho repetindo: “Eu vou morrer”- algo que já fazia há tempos, mas que agora ganha ares de recurso dramatúrgico.
O sol continua lá fora, sem que eu veja ou sinta, como tantas mensagens que me chegam: “Se precisar, tô aqui, tá?”. Tá bem. A gata sumiu, talvez queira seu próprio isolamento. E por hoje, o cursor já parou de piscar na tela em branco.