Como quem nasce aqui nesta Juiz de Fora que há quase vinte anos é minha casa, também cresci em uma cidade cortada, dividida, tracejada, riscada ao meio. Minha Três Rios também tem duas partes, uma lá e outra cá da linha do trem. Além das cargas que leva e traz, a ferrovia decide também outras tantas sortes locais, a começar pela geográfica.
Não importa em que ponto da cidade se esteja, “depois da linha do trem” é sempre uma locução adverbial de lonjura. Nunca ouvi, mesmo de quem mora às margens da linha férrea, a referência: “fica logo ali, boba, pertinho da linha”. Também o passar dos vagões define o tempo. Desde muito nova criei uma teoria, que importei para Juiz de Fora, de que a passagem do trem está condicionada à pressa de quem precisa atravessar os trilhos. Quanto maior o atraso, maior a certeza da travessia da locomotiva.
“Mas e a passarela?”, você que lê deve perguntar. Quem, como eu, cresceu sob a lei da ferrovia aprendeu, ainda criança, que em qualquer lugar que seja, ela é sempre a última cavalaria a ser acionada, seja por (falta de) segurança urbana, seja por (excesso de) odores duvidosos. Pouquíssimas vezes cruzei a passarela, não há escolta, limpeza ou garantia de que chego ao outro lado intacta que seja suficiente para me converter.
Hoje em dia moro numa parte bem alta do São Mateus, e raramente me lembro da existência do trem. Numa madrugada insone dessas, não me perguntem como, mas ouvi da cama, rompendo o silêncio, o trem. Nem pensei em me questionar se era possível. Como se viajasse em um vagão, fiz um passeio rápido por diferentes momentos da vida, invariavelmente atravessados pela travessia da locomotiva. Durou pouco – fim que a sabedoria popular atribui às coisas boas -, porque logo senti a solidão típica de quando a gente não encontra nosso lugar, não pertence, não se encaixa. Não estava mais em casa. O trem parou de passar.