Não tem ‘memédio’
Dizem meus pais que, por volta de dois anos de idade, eu, estreante no mundo da palavra falada (ou melhor, balbuciada), era apaixonada por um hit do Moraes Moreira da época, “Sintonia” (1987). No meu dialeto peculiar, cantarolava o refrão: “Não tem ‘memédio’, não tem ‘memédio’ …”. Obviamente não me lembro disso, mas tenho a recordação bem vívida da capa do vinil, uma foto dessas que perde a nitidez porque retratou o movimento, no caso, Moraes todo de branco com o violão às costas montado numa bicicleta colorida. Sempre gostei dessa capa, e carrego os versos do baiano, sozinho, com os novos outros, ou com o filho, pela vida afora na minha sacola, invisível a todos, porque ando sempre com mais de um. (Mas atualmente só com mais uma, a minha gata que se enrosca em meus pés enquanto escrevo).
Tenho, nestes dias de quarentena, tentado me manter como a capa deste disco, “Mestiço é isso”: em movimento, me preocupando menos com a crueza da nitidez dos fatos e enxergando somente o mínimo necessário para conseguir uma imagem precisa da realidade. O mundo isolado e infectado em alta definição tem sido duro demais na maior parte do tempo. Mesmo assim, não sei se como um superpoder ou um calcanhar de Aquiles, ainda que eu não a veja em sua complexa totalidade, a verdade, palpável, imutável e incontestável, sempre chega a mim sem que eu faça esforço.
Assim, não tem tentativa de alienação voluntária que me proteja (ou a qualquer de nós) da realidade, que se impõe entre frestas e cantos. Enfrentamos a maior crise mundial de nossos tempos sob um governo que não se importa com quantas e quais pessoas morrerão. Que debocha da ciência e desafia a morte ( em massa) diariamente, fazendo com que uma multidão de zumbis mimetize o ato em vergonhosas carreatas que pedem a “retomada” da “vida normal”. Não tem Rubem Fonseca. Não tem Moraes Moreira. E apesar da ignorância de quem contraria o trabalho científico preconizando milagres à base de água tônica ou de cloroquina, vale a máxima que eu – quem diria – entoava antes até de ser gente: não tem ‘memédio’.