Manifesto de uma desastrada
Desde que me lembro, tenho incontáveis roxos, cicatrizes e ralados espalhados por todo o corpo. Nem dá tempo de sumir um, já aparece pelo menos um outro. A “tampa” do dedão, coitada, já muito foi ralada no asfalto, carregando, não raramente, a unha que lhe orna. Na outra extremidade, o mindinho parece ter um magnetismo irreversível para quinas de guarda-roupa e móveis variados, como se quisesse evadir do pé.
Só quem, como eu, tem uma tendência a microdesastres cotidianos, sabe da tendência de todas as roupas a agarrar em maçanetas, de todos os sapatos a fazer o pé virar (não só os de salto, como em gente normal) e de qualquer objeto ao alcance a ser derrubado. Por conta deste estigma, passamos muita vergonha na rua: caímos “de madura” em locais cheios, lançamos ao chão produtos de gôndolas em supermercados, quebramos incontáveis copos e/ou derramamos seu conteúdo – sobretudo em quem não deveríamos.
Rendemos até boas gargalhadas, mas não sem também causar certos constrangimentos – alheios e a nós mesmos. Porque com a gente não tem dessa: podem até ver as pingas que tomamos, mas jamais – repito, jamais – perderão os tombos que levamos. (Ditado, aliás que eu nunca entendi, porque queria mesmo era que só me vissem sem me estabacar, com ou sem cachaça).
Eu costumava ter muita raiva de ser assim, tão suscetível a quedas, encontrões, mordidas na língua e cortes de papel nos dedos (insira aqui mais modalidades de pequenos acidentes do dia a dia). Mas hoje em dia gosto de pensar que nós, desprovidos de graciosidade, estamos tão sujeitos a colisões porque, de fato, não cabemos em nós mesmos. Transbordamos. Afinal, um corpo só é uma morada muito pequena para a complexidade desta estrada tão curta que é a vida, uma cápsula diminuta demais para tanto sentir, um lugarejo tranquilo demais para o correr indelével dos relógios. Quando isso tudo extravasa, esbarramos, batemos, cortamos, ralamos, caímos. Repetidamente. Mas tudo bem. É melhor do que explodir.