Brigando com a vida
Longe, léguas, quilômetros, estourem-se as unidades de medida para falar o quanto eu quero de distância de mim a romantização da maternidade e da tão idealizada, estereotipada e mercantilizada (óbvio) imagem da mãe. Como não sou uma, posso falar da minha, da que tenho, como a vejo e como a sinto. E assim, quanto mais os anos passam, parece que nos aproximamos ainda mais, seja pelo fato de que somos, há alguns anos já, duas mulheres adultas, seja porque a vejo cada vez mais nitidamente quando me olho no espelho ou quando reconheço alguma fala ou trejeito seu em mim.
Acho engraçados esses memes de mãe que rondam a internet com máximas como “você não é todo mundo”, “tá pensando que eu sou sócia da Light?” e suas variantes, porque embora acredite piamente na exclusividade de cada ser humano e, sobretudo, na singularidade de minha mãe, ouvi muitos destes como filha. Mas o curioso sobre Dona Silvia, professora de gerações e gerações de estudantes de Três Rios (RJ), onde nasci e cresci a seu lado, é que ela tem seus próprios bordões, que hoje vira e mexe me flagro repetindo. “Não é sangria desatada”, para algo que não requer pressa. “Deus é muito meu amigo”, quando alguma coisa boa acontece, principalmente se for diante de uma situação difícil. “Vamos caminhando, não é mesmo?”, manifestando otimismo em tempos duros. Há tantos outros que poderia fazer uma “Silvipedia” com as pílulas de sabedoria desta mulher que se doa tanto pelas pessoas e pelas causas em que acredita.
Na semana que se passou, que culmina neste Dia das Mães, o primeiro que passaremos separadas, ela me lembrou, sem perceber, de um de seus clássicos, que me pôs reflexiva desde então. “Tô brigando com a vida para a vida não brigar comigo”, disse ela displicentemente enquanto nos víamos por nossas telas. Talvez esse seja o fragmento da filosofia silviana que mais me defina nos últimos anos, em especial no momento em que vivemos. De fato, tô brigando com a vida.
Brigo e brigarei, em recusa absoluta em ficar quieta diante de uma liderança genocida em que “cala a boca” é palavra de ordem. E tô em pé de guerra com a vida cada vez que relato esse negação ao silêncio aqui nesta coluna. Brigo com a vida sem sequer ver a cada do sol, mas fechadinha nos meus privilégios que me permitem ficar resguardada em casa por mim e por todo mundo. Travo, professora que sou, exatamente como minha mãe faz também, pequenas batalhas com o ensino à distância emergencial, comemorando com ela cada minúscula vitória: “a turma participou muito”, “senti que o pessoal gostou”, “fiquei satisfeita”. Estou em luta constante para manter a sanidade mental num estado de pandemia, isolada de todas as pessoas que amo, vivendo em um país em que elevaram da sucata a Secretária de Cultura uma mulher que relativiza a ditadura, a morte e a tortura porque “a vida é leve”. Tô brigando pra me manter funcional e atenta, mesmo quando parece que a realidade é um pesadelo mal roteirizado.
Tô brigando contra a saudade antecipada de um Dia das Mães sem o tradicional almoço com as muitas mães da minha família matriarcalíssima. Batalho para não me deixar vencer pelo medo do futuro, dado nosso presente pandêmico, político, econômico e social. Duelo com a distância da minha mãe, encurtada por videochamadas diárias, porque sei que estar longe é a única maneira de estar perto tão logo seja possível. E nessa briga, tão solitária e tão coletiva ao mesmo tempo, uso a sabedoria da professora Silvia como escudo e como mantra, sempre me levando de um dia a outro, um de cada vez: “Tô brigando com a vida para a vida não brigar comigo”. E assim, de tanto brigar por via das dúvidas e por sobrevivência, venho ganhando.