
O poeta é mineiro. Há mais de 30 anos, mora em São Paulo, na divisa com Minas. Na verdade, da janela de casa, segundo ele, dá até para ver a terra natal. Então, quando bate aquela saudade do nosso pão de queijo, ele nos faz uma visita. Mas o que eu quero contar mesmo é que o poeta percebeu que poesia rima com geografia, e aí começou a compor, por meio de versos, uma espécie de mapa afetivo de Minas Gerais. E dessa empreitada inspirada na cultura e na geografia mineira nasceu o “Primeiro livro de poemas das Minas Gerais”, cujo lançamento em Juiz de Fora está programado para o dia 08 de março, às 10h, na Autoria Casa de Cultura.
“Minas é o melhor lugar do mundo!”, dispara José Santos. Na obra, ele brinca com nomes de municípios, expressões locais, elementos típicos e personagens. Para escrever os poemas, foi necessário fazer muita pesquisa. Afinal de contas, é muita cidade mineira. E é claro que as memórias vividas aqui também ajudaram a alimentar a criatividade do autor. A inspiração foi tanta que já tem até previsão de lançamento de um segundo volume. Além disso, o autor também participa do projeto “Mapa da Poesia”, uma série de livros para crianças e jovens criada por ele em parceria com a designer e ex-integrante do Grupo Divulgação Ieda Alcântara. A coleção une poesia e geografia em edições ilustradas e delicadas. Em maio, será lançado “Mapa da Poesia Poços de Caldas”.
José Santos é de Santana do Deserto e veio para Juiz de Fora, em 1976, aos 16 anos. Foi no período de estudante da UFJF que ele viveu os anos efervescentes da década de 1980. Ao lado de nomes, como Edimilson de Almeida Pereira, Fernando Fiorese Furtado e Iacyr Anderson Freitas, fez parte do Abre Alas, movimento de cunho contestador composto por poetas e estudantes da cidade. Com o lançamento do “Primeiro livro de poemas das Minas Gerais”, ele celebra os 20 anos de publicação de seu primeiro livro infantil.
Marisa Loures – Essa brincadeira com expressões locais, nomes de municípios e elementos típicos de Minas Gerais te mantém mais próximo da sua terra?
José Santos – Sem dúvida. Quando a gente vai remexendo em palavras que, por exemplo, meu avô falava, minha mãe falava, é muito bacana. Você lê um texto de 200 anos e que tem essa palavra também é muito bacana. Então, são conexões muito subjetivas, mas que dão uma ligada, né? Eu vou a algum lugar que alguém fala “reta”, e eu digo: “isso aqui é familiar.” Por exemplo, eu agora moro na zona rural, no interior de São Paulo. Fico a 40 quilômetros da divisa de Minas. Eu vejo Minas pela janela. Quando me aperta um pouquinho, vou comer um pão de queijo em Camanducaia. Agora, vou ter um momento maravilhoso em Juiz de Fora, vou encontrar os amigos. Então, fica tudo muito próximo.
– Na crônica “Das vantagens de ser bobo”, Clarice Lispector define o “bobo” como alguém sensível e generoso, que enxerga o mundo com pureza e afeto. Ela menciona Minas Gerais com carinho, dizendo que aqui é fácil ser bobo. No seu poema sobre pão de queijo, você reforça esse afeto ao dizer que ele é melhor quando servido em Minas. O que torna esse estado tão especial? Esse sentimento de pertencimento sempre influencia sua escrita?
– Minas é o melhor lugar do mundo! Estando fora de Minas, fica melhor ainda, porque dá aquela saudade toda. Agora, da mesma maneira que a gente tem esse sentimento, o gaúcho tem, o paraense tem. É uma coisa que nos junta. E, realmente, tem aquela frase, que é um clichê, mas que é ótima: “a gente sai de Minas, mas Minas não sai da gente.” Moro há mais de 30 anos fora de Minas, mas essa coisa está sempre cultivada. Moro em São Paulo há mais de 30 anos, mas a gente tinha nosso grupo da colônia mineira por lá: Gilmar Santana, Pedro Hallack, Luiz Ruffato, tem uma turma que está lá, que a gente se via. Tem o restaurante do consulado mineiro, que é de um cara de Senador Firmino. Então, a gente vai arrumando um jeito de matar a saudade. E eu quis fazer esse livro, que é um livro regionalista. Alguns editores com quem conversei não quiserem. Falaram que é um tema regional, que, então, tenho que fazer de todos os estados, mas multiplica por 26. É difícil, né?
– Seus poemas criam uma espécie de mapa afetivo de Minas Gerais. Há alguma cidade ou região que tenha um significado especial para você e que acabou ganhando um destaque maior no livro?
– Eu tive que me conter, porque eu escrevia olhando o mapa. Eu já fui a muitos lugares, mas não fui a todos. É para isso que tem a literatura, que viaja pela gente. O legal da literatura é isso, né? A gente pode ser um cabo de vassoura, pode ser um bicho, pode ser tudo dentro do que a gente escreve. E na literatura de viagem também, na ficção, a gente pode ir a lugares em que nunca estivemos, mas que queria ir. Eu tive que me conter, porque senão iria botar só as logomarcas no livro. Cataguases, Leopoldina, Muriaé, Carangola, Bicas, Mar de Espanha. Nossa! Muitas viagens e muitas histórias. Juiz de Fora é uma parada especial, porque morei aí por muito tempo, e é a minha escola de poesia. Juiz de Fora tem um grande número de artistas, e essa convivência faz a gente crescer. E eu dei uma sorte porque, na minha turma de universidade, não a da comunicação, mas do entorno, pude conviver muito com Edimilson Pereira, Iacyr Freitas, Fernando Fiorese, Júlio Polidoro. Nossa, é muito gente. Se eu ficar citando aqui, vai ficar gente de fora e fica ruim. Juiz de Fora é um lugar muito forte no meu aprendizado de literatura. Não sei se eu não tivesse morado aí se eu teria esse fogo todo para estar animado com a literatura. Acabei fazendo uma carreira profissional, e sempre foi por isto, porque aí era um ambiente de arte e cultura.
– Ao ler seu livro, a questão da memória me veio com muita força…
– Eu fiz uma pesquisa boa também. Criar é um pouco isto: tem a emoção, mas também tem a feitura da coisa. Ver a palavra não como ocasional, mas ficar trabalhando as camadas da palavra, o verso. Aprendi isso muito com o Fernando Fiorese e com o Iacyr. Nossa, como eles levam o verso ao extremo. Mexem e remexem. Para o leitor, já estava bom, mas eles não ficam satisfeitos, tem que ir além para ficar uma coisa bem redonda.
– E com o projeto “Viajante das Palavras”, você e a escritora Selma Maria têm trabalhado para preservar a memória das culturas populares brasileiras, com destaque para a identidade caipira. De que maneira a memória cultural pode contribuir para a preservação da diversidade cultural brasileira? E como seu novo livro se relaciona com essa proposta?
– Esse falar caipira que o mineiro fala, o paulista, o norte do Paraná, os estudiosos falam que são as regiões do dialeto caipira. A gente tem que ter orgulho de falar assim, tanto com o sotaque, como com essas palavras. A gente vive, antes com a TV e hoje com a internet, uma tentativa que isso fique homogêneo, o que é terrível, que as pessoas tentem falar igual ao modelo do sul maravilha, e aí a gente vai perdendo a força das palavras, as expressões. Então, a literatura é um jeito de fazer resistência. Estamos tentando tocar esse projeto, fazendo livro, e o “Primeiro livro de poemas de Minas Gerais” faz parte dele, porque ele toca o mineiro, mas também já vi que, no interior de São Paulo, na divisa com Minas, os paulistas também gostam, porque tem esse modo de vida que, não é que esteja acabando, mas que fica mais escondido. Nós temos dois problemas. Tem esse problema da “modernidade”, que acha isso antiquado, arcaico, e tem um problema maior ainda, que é a imitação de um modelo caipira norte-americano. Aqui no interior de São Paulo todo, tem esta coisa do country. É uma guerra do jeca contra o country, do saci contra o hallowenn. Às vezes, o paulista aqui do interior fica mais texano, na roupa, na bota, no cinto e no chapéu, do que o cara do Texas. E as escolas precisam lutar contra isso, porque senão as crianças vão ficando com vergonha de serem elas.
– De que forma essa experiência no campo da memória influencia sua escrita e seu olhar sobre o passado?
– Essa questão da memória é importantíssima. Segui um caminho profissional. Fiquei 15 anos no Museu da Pessoa, fiz parte do grupo fundador. Hoje, sou apenas um conselho de lá, dou meu apoio, mas é difícil acompanhar, porque é uma ONG que foi crescendo muito. Mas eu creio que a memória é que dá unidade para a gente, através do que a gente vai conectando com o nosso passado. A gente vai se lembrando das palavras, das expressões, da comida, do jeito de fazer uma série de coisas, e isso nos unifica, nos dá pertencimento. E isso sempre me acompanhou. Antes de ir para São Paulo, tive um aprendizado muito legal em Juiz de Fora. Essa preservação da memória arquitetônica de Juiz de Fora, nos anos 1980, acompanhei isso. Participei, na Funalfa, de alguns trabalhos relacionados à memória, como por exemplo uma longa entrevista memorialística que o poeta Affonso Romano de Sant’Anna gravou e que é um tesouro. E aí acabei me envolvendo com o trabalho da memória oral, com o trabalho de fazer longas entrevistas biográficas com pessoas de diferentes origens. É um tema muito bacana que eu tenho passado um pouco, também, para a literatura, principalmente num projeto que tem, no Museu da Pessoa, de cordel biográfico. Pegar uma entrevista de 50 páginas de material transcrito e transformar em cordel é uma experiência muito bacana. Imagine pegar uma entrevista, rimar e metrificar. É um desafio que dá muito certo.
– Você já falou sobre sua vivência em Juiz de Fora, na década de 1980, momento de contestação, de luta para que a abertura ocorresse plenamente. Quais elementos desse período, da luta pela liberdade de expressão e do espírito contestador do Abre Alas, permanecem com você até hoje? Como suas lembranças se refletem no seu trabalho atual?
– Eu me mudei para Juiz de Fora em 1976, tinha 16 anos. Era ditadura, e aí eu vivi a efervescência que tinha aqui. Teve a luta da anistia, e aí sim uma luta justa e correta pela anistia. Tinha o Comitê Brasileiro da Anistia. Depois, eu fui para a Universidade. Depois teve a campanha das Diretas Já. Juiz de Fora tinha um placar das Diretas, no Parque Halfeld, onde você acompanhava a votação dos deputados. Foi um clima muito efervescente que mexeu comigo e porque tinha essa coisa toda da literatura, que começa com o jornal Bar Brazil e o Folheto da Poesia. Nessa época, já estava em ação o José Henrique da Cruz, o Jorge Sanglard. Isso depois influenciou para que surgisse o folheto Abre Alas, que durou muito tempo, e a revista D’Lira. Isso tudo foi me formando, porque Juiz de Fora tem esta vantagem de ser cidade menor. Cresceu muito de lá para cá, mas, mesmo assim, ainda tem esta característica legal de você encontrar mais fácil com as pessoas, fazer conexões. Tem a UFJF como estímulo da vida cultural. E isso faz eco até hoje. Ainda me sinto um pouco aquele menino chegando a Juiz de Fora deslumbrado com o tamanho dos prédios da Rua Halfeld, que era a maior Rua Halfeld do mundo.
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– Você já falou um pouco sobre o Fiorese, o Iacyr e o Edmilson Pereira, com os quais convive desde a época de estudante em Juiz de Fora. Qual o papel desses amigos escritores na construção do seu próprio caminho literário? O que essas trocas significam para a sua escrita?
– A gente é amigo até hoje, e eu deixo sempre muito claro que é um aprendizado. Eu fico impressionado com aquele texto elíptico e genial do Edimilson e vou aprendendo a cada livro. Aprendo com o Iacyr. Agora, este livro novo do Fernando é maravilhoso. É uma aula de história, é um exemplo de que a história pode conviver com a poesia. Mas, além deles, tem Júlio Polidoro, que é um clássico. Tem o Knorr, com quem aprendi muito. Ele fazia uma poesia pendendo para o visual antes de ter esses equipamentos todos. Além disso, tenho que destacar que tive a felicidade de ter professores da área muito preparados e que mexeram comigo. E alguns colegas também, como Gilvan Ribeiro, a professora Leila Barbosa, a Terezinha Scher, a Marisa Timponi. Quanto que eu aprendi de Murilo Mendes com a Marisa! Então, tendo esse convívio todo, fica mais fácil escrever e virar escritor, porque é uma troca intensa. Não tinha essa história de, em Juiz de Fora, você ficar trancado num quarto, isolado, porque a cidade propicia isso, né? E é uma ligação muito real. É claro que cada um está de um lado. Estou aqui, o Iacyr e o Fernando estão em Juiz de Fora, o Luiz Ruffato está em Portugal, mas a gente vai se comunicando. Não tem desculpa. Mas nada como o contato olho no olho. É por isso que estou muito animado para ir aí. Agora, tem um aprendizado muito específico, que foi o da literatura infantojuvenil, porque eu tive uma madrinha e um padrinho espetaculares, que me apoiaram muito no início, que são a Mary e o Eliardo França. Construíram uma carreira internacional a partir de Juiz de Fora. A obra deles é uma coisa muito grande, e eles estavam abertos a apoiar novas pessoas. O mundo infantojuvenil é muito fechado, muito difícil de entrar, e o apoio deles foi importante para me ajudar a quebrar esse bloqueio.
– É de impressionar o fato de você ter escrito mais de 60 livros, e esse lançamento marca os 20 anos do seu primeiro livro infantil. Olhando para essa trajetória, como enxerga sua evolução como escritor ao longo dessas duas décadas?
– Na verdade, eu estava escrevendo desde a adolescência, mas essa data dos 20 anos, que é de 2005, foi quando, de fato, consegui uma primeira editora. E eu usei isso como marco. Nesses mais de 60 livros, faço uma divisão, porque há livros que são obras minhas. Claro que em parceria com ilustradores e editores. Mas segui também fazendo livros colaborativos, com estudantes de escolas públicas. São quase 30, numa coleção que se chama “A cidade da gente.” É um projeto muito bacana. Eu e Selma Maria ficamos nele por seis anos. E eu fiz quase uma dezena de livros, também com escrita colaborativa, a partir de uma cidade de Minas, que é Conceição de Mato Dentro. É a escrita de alunos de escolas públicas junto com estudantes de outros países de Língua Portuguesa. Começamos com Portugal, depois chegamos à Angola, Moçambique, Cabo Verde. Então, eu me sinto como um aluno. Estou aprendendo até hoje. Estou fazendo meus livros, e estamos passando isso para a frente, o que é muito importante. Você está lá com a professora na sala de aula, e as crianças pegam tudo muito fácil. Em termos de evolução, começo com a poesia, que é muito mais fácil para mim. A prosa me consome mais, mas consegui fazer alguns livros de crônica e fiz um romance juvenil, que é “A misteriosa carta portuguesa.” Então, eu vou inventando, pouco a pouco, mas não deixando a poesia de lado, porque é o gênero com o qual me identifico mais. É muito mais fácil escrever 30 estrofes sobre um tema do que fazer dois parágrafos.