‘O maior desafio é evitar a apropriação da proposta de Jesus pela ótica fundamentalista’, dispara Frei Betto

No Sala de Leitura deste semana, Marisa Loures conversa com Frei Betto

Por Marisa Loures

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Autor de 79 livros publicados e adepto da Teologia da Libertação, Frei Betto, em entrevista à coluna Sala de Leitura, reflete sobre a união entre fé e revolução, o ofício de escrever e a conscientização em torno da preservação dos povos originários (Foto: Jackson Romanelli/Divulgação)

Frei Betto é um nome que evoca a união entre fé e revolução. Por isso, na edição de hoje da coluna Sala de Leitura, quis saber dele quais os maiores desafios para manter a dimensão libertadora da fé em tempos de crise social e política. “O maior desafio é evitar a apropriação da proposta de Jesus pela ótica fundamentalista”, dispara o religioso, que concedeu esta entrevista na noite da última segunda-feira, às vésperas do workshop intitulado “O ofício de escrever”, realizado nos dias 16 e 17 de janeiro, dentro da programação de Férias do Instituto Estação das Letras.

Frade dominicano e adepto da Teologia da Libertação, ele constrói uma obra que frequentemente dialoga com questões de fé e espiritualidade. Também escreve livros que conversam diretamente com momentos históricos, como “Batismo de sangue” (Rocco, 448 páginas), título considerado fundamental para entendermos os dolorosos anos da ditadura militar. E essa sua habilidade de articular história e reflexão nos leva a pensar no papel do escritor em tempos de polarização e desafios sociais. “O papel do escritor é escrever bem, recriar e enriquecer a linguagem, registrar a condição humana e seu contexto. Na ficção, desvelar o real e transfigurá-lo como arte. No ensaio, induzir o leitor a enxergar o que o senso comum não vê”, afirma.

Frei Betto nasceu em Belo Horizonte. Estudou jornalismo, antropologia, filosofia e teologia. É autor de 79 livros, número que impressiona, e foi duas vezes vencedor do Prêmio Jabuti. Nesta entrevista, a conversa começa com “Tom vermelho de verde”, obra em que o dominicano expõe o drama dos Waimiri Atroari e os impactos da exploração da Amazônia, ao mesmo tempo que celebra a riqueza da cultura indígena. O religioso também fala sobre como a literatura pode auxiliar no aprofundamento de reflexões religiosas e no engajamento de leitores em debates sociais.

Marisa Loures: Para a última edição do Clube de Leitura do CCBB de 2024, o público escolheu a obra“Tom vermelho de verde”, que é um livro de denúncia, mas também um romance histórico. Que caminho busca percorrer para equilibrar a denúncia política e social com os elementos narrativos que cativam o leitor?

Frei Betto: Meu objetivo ao criar um romance é contar uma boa história, e não propriamente fazer denúncias. Denúncias faço em ensaios e artigos. Mas não perco a oportunidade quando posso unir uma narrativa ficcional a situações críticas, como o massacre de povos indígenas pela ditadura militar, como descrevo em “Tom vermelho de verde”.

E em entrevista recente, o senhor comentou que, embora engajado na luta contra a ditadura militar, só tomou conhecimento de que os indígenas foram o segmento mais atingido pelo regime, muito tempo depois. O que o senhor não conseguiu ver naquele momento? Quais foram suas descobertas?

⁠Como Sócrates, sei que não sei muita coisa. E só vim a descobrir que os povos indígenas foram as principais vítimas da ditadura após a redemocratização do Brasil, em 1985.

Em um momento crítico para os povos originários e a Amazônia, de que maneira o diálogo cultural e histórico pode ser ampliado para conscientizar a sociedade sobre a preservação desse patrimônio humano e ambiental?

Nós, brasileiros, conhecemos muito pouco a respeito de nosso próprio país. Embora o golpe militar de 1964 tenha completado, ano passado, 60 anos, há muita gente que se surpreende com a realidade da ditadura militar ao ver, agora, na tela dos cinemas, o filme “Ainda estou aqui”, que narra o desaparecimento e morte do ex-deputado Rubens Paiva. E quantos sabem que a Floresta Amazônica tem 600 bilhões de árvores e joga mais vapor na atmosfera que todo o volume de água do Rio Amazonas?

Frade dominicano e adepto da Teologia da Libertação, o senhor constrói uma obra que frequentemente dialoga com questões de fé e espiritualidade. De que maneira a literatura se torna uma ferramenta para aprofundar reflexões religiosas e engajar leitores em debates sociais?

⁠A literatura é um poderoso recurso de registro e comunicação de tudo que envolve o ser humano. E a espiritualidade é uma dimensão intrínseca à nossa natureza. Como Deus me deu o dom da escrita, uso-o para abordar temas pertinentes à subjetividade humana.

O senhor é um nome que vem à nossa cabeça quando pensamos na união entre fé e revolução. Quais os maiores desafios para manter essa dimensão libertadora da fé em tempos de crise social e política?

Creio que, hoje, o maior desafio é evitar a apropriação da proposta de Jesus pela ótica fundamentalista e realçar sua dimensão libertadora, política, de radical transformação da sociedade para superar todas as violações aos direitos humanos. É o que tento fazer na tetralogia quem vem sendo publicada pela Vozes, abordando os quatro evangelhos, pedras angulares da fé cristã. Já foram lançados “Jesus militante”, sobre o evangelho de Marcos; “Jesus rebelde”, sobre Mateus; e acaba de ser lançado “Jesus revolucionário”, sobre Lucas. Em breve, virá “Jesus amoroso”, sobre João.

O senhor é autor de 79 livros, um número impressionante. Como manter esse ritmo de produção literária? O que o motiva a escrever tanto e como organiza seu tempo e seu processo criativo para produzir tantas obras?

⁠Sou disciplinado, procuro dedicar boa parte do meu tempo ao “Ofício de escrever”, título de um de meus livros editados pela Rocco.

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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