Jeferson Tenório: ‘Não se trata de uma história com uma grande redenção ou heroísmo, mas a história de um rapaz negro comum’

No Sala de Leitura deste semana, Marisa Loures conversa com Jeferson Tenório

Por Marisa Loures

Jeferson Tenorio Divulgacao
Em “De onde eles vêm”, a implantação do sistema de cotas raciais é o pano de fundo para Jeferson Tenório discutir a trajetória de estudantes negros na universidade pública (Foto: Divulgação)

Jeferson Tenório me disse que concorda com a opinião de alguns dos seus seguidores: a proibição imposta a “O avesso da pele” retrata a tentativa de apagamento da cultura e das raízes africanas. E aqui é importante recordar: a obra revela as feridas de uma sociedade que insiste em negar a humanidade de corpos negros e celebra a luta por identidade, memória e resistência. Foi censurada no início deste ano, quando algumas escolas públicas brasileiras decidiram retirá-la de seus acervos. O motivo? Segundo seus detratores, ela contém conteúdos inadequados para estudantes.

Ironia do destino, o episódio contribuiu para que “O avesso da pele” se tornasse um dos livros mais vendidos do Brasil. Em março, segundo dados da Amazon, as vendas do título dispararam, registrando um aumento de 400%. Esse crescimento, inegavelmente, evidencia a popularidade do livro, que tem sua relevância reconhecida e que foi utilizado por diversos estudantes como repertório na redação do Enem 2024, cujo tema, “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”, foi recebido com entusiasmo por muitos candidatos.

A breve entrevista concedida a mim foi realizada na noite do dia 18 de novembro, cinco dias após o último encontro do Clube de Leitura do CCBB, onde Tenório e Itamar Vieira Junior debateram as heranças hereditárias de Zumbi em suas narrativas. E confesso. Não foi fácil conseguir um espaço na agenda do escritor carioca. Afinal de contas, o nome dele voltou aos holofotes (se é que chegou a sair de lá) por causa do lançamento de “De onde eles vêm” (Companhia das Letras, 208 páginas).

Na nova publicação, a história tem Joaquim como protagonista. O cenário é a periferia de Porto Alegre. Anos 2000, aproximadamente. Trata-se de um jovem preto, órfão, desempregado e sem dinheiro. Ele ama os livros e a literatura e entra em uma universidade pública por meio do sistema de cotas. Aliás, a experiência do personagem ecoa o próprio percurso do autor: jovem negro e aluno cotista. Ambos foram pioneiros em um espaço acadêmico ainda dominado por referências eurocêntricas, brancas e masculinas, que frequentemente ignoravam vozes negras.

No entanto, há nuances que os diferenciam. Enquanto Joaquim já adentra a universidade como um leitor ávido, Tenório vai construindo uma relação com a literatura aos poucos. “’De onde eles vêm’ traz como pano de fundo a implantação das cotas raciais. Não tem o objetivo de discutir o processo, mas a trajetória de estudantes negros na universidade pública. É uma tentativa de representar personagens negros com mais complexidade, sem cair em clichês ou lugares comuns que acabam reforçando estereótipos na população negra”, afirma o autor.

Representatividade

Desde o lançamento, o livro tem despertado debates e reflexões, reafirmando o papel de Tenório como um dos autores mais importantes da literatura brasileira contemporânea. “De onde eles vêm” não apenas amplia as discussões sobre representatividade, mas também reafirma a força narrativa do autor em abordar temas que dialogam diretamente com o Brasil de hoje.

Segundo Tenório, nessa nova publicação, ele buscou diminuir o tom mais explícito do racismo, que, de certo modo, é mais evidente em “O avesso da pele”.  O que motivou essa escolha e como essa abordagem mais sutil pode impactar a percepção do leitor sobre questões raciais? Quais diálogos ou reflexões o autor busca suscitar no leitor por meio desse tom mais agridoce? Pergunto a ele. “Acho que o racismo tem um poder de sofisticação como forma de continuar incidindo na sociedade. Em ‘De onde eles vêm’, quis refletir sobre as formas mais sutis e mais profundas do racismo, demostrando a normalização do preconceito que, em muitos casos, é quase imperceptível”, ressalta o escritor, para logo apontar que o tom mais suave tem mais a ver com a trajetória de Joaquim, que vive entre derrotas, falhas e pequenas conquistas. Ele destaca que é justamente esse enfoque que faz da obra um dos retratos mais realistas de sua bibliografia. “Não se trata de uma história com uma grande redenção ou heroísmo, mas a história de um rapaz negro comum.”

Leia um trecho de “De onde eles vêm”

De onde eles vem Divulgacao
(Foto: Divulgação)

(…) Escrevi meu primeiro poema porque queria ser leitor. Um dia me deitei na cama e olhei para minha estante de livros. A maioria eu tinha comprado, alguns tinham sido roubados da escola, da biblioteca ou de livrarias. Outros foram dados pelo Sinval. Havia um livro verde de capa dura, antigo, com as pontas danificadas pelo tempo. Era sobre o valor nutricional das frutas. Ganhei da minha mãe quando tinha uns cinco anos. Embora ela não fosse uma grande leitora, acreditava nos livros e queria que eu também acreditasse. Minha mãe morreu quando completei doze anos. Ela teve uma grave doença no coração. Ainda hoje, sempre que sinto palpitações, lembro dela. Talvez tenha sido essa lembrança que me levou a pegar aquele livro. Eu ouvia os latidos dos cães lá fora, vizinhos falando alto, carros passando e motos barulhentas. Peguei meu caderno de notas e escrevi: estante revisitada. Era ali o início do meu poema? De onde vêm as palavras? De onde vêm os versos? De onde eles vêm? Talvez viessem de todos os lugares. De todas as partes do meu corpo. De todo o barulho ao redor. De todas as vozes que li. Do coração silencioso de minha mãe. Da sujeira e da degradação do mundo. Então percebi que o poema é arbitrário. Não nasce nem morre. Não tem lógica nem função. Trata-se apenas de fluxos. Descobrir a origem de um texto o mataria? Permaneci olhando para a capa verde daquele livro. Até os meus dez anos, eu nunca o havia lido. Eventualmente o abria numa página qualquer, mas acontece que o livro tinha outras funções na minha vida. Servia de brinquedo, objeto que eu jogava de lá para cá, nunca para leitura. Mas penso que, de certa maneira, o livro cumpriu seu papel comigo. Foi útil para as necessidades básicas que eu tinha. Então, uma vez, ainda na infância, quando me senti entediado, abri o livro. Lembro que me deitei no sofá e comecei a ler sobre maçãs, bananas e abacaxis. Aquela imagem de uma pessoa deitada no sofá lendo um livro me atraía. De algum modo, tornei-me leitor não por causa da leitura em si, mas porque eu gostava daquela imagem: alguém que lê. Era disso que eu lembrava quando comecei a escrever o poema para a disciplina na faculdade. Terminei-o quase às três da manhã. Eu não estava satisfeito, mas foi o que pude fazer. Julgava que o poema era ruim, ainda assim me senti animado, porque a literatura fazia com que eu me sentisse grande diante das coisas, e aos vinte e quatro anos eu precisava dessa grandeza para não sucumbir. Diante do texto eu me sentia íntegro e precário. Eu não tinha muita consciência do que aquele poema significava. Eu já não tinha mais tempo para escrever outro. Então decidi que seria aquele mesmo que eu levaria para a aula. (…)

Encontros do CCBB

Para encerrar 2024, o Clube de Leitura CCBB recebe Frei Betto na próxima quarta-feira (11), às 17h30. O escritor e frade dominicano participará de um bate-papo com a teóloga e jornalista Magali Cunha, que é doutora em Ciências da Comunicação, com estágio pós-doutoral em Comunicação e Política. De acordo com a organização do evento, a discussão vai girar em torno de “Literatura e transcendência”.

O Clube de Leitura CCBB é realizado no Salão de Leitura da Biblioteca Banco do Brasil, localizada no CCBB Rio. Para participar, os interessados devem retirar o ingresso na bilheteria do CCBB RJ ou no site.

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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