‘A comida narra a história do sujeito’


Por JÚLIO BLACK

01/02/2015 às 07h00

Cissa Bores pretende lançar websérie no YouTube em abril

Cissa Bores pretende lançar websérie no YouTube em abril

A mineira radicada no Rio de Janeiro Cissa Borges aproveitou um desses momentos em que as pessoas repensam a vida para criar o “Soul kitchens project”, registro audiovisual de encontros entre amigos ou famílias em que o ato de cozinhar serve para aproximar as pessoas. A iniciativa, nascida em 2014, tem por objetivo chegar às casas e compartilhar o processo de preparação das refeições que elas fazem cotidianamente, de maneira informal. O resultado desses encontros gastronômicos deve começar a ser veiculado em abril, pelo YouTube.

Em entrevista à Tribuna, entre uma visita e outra, Cissa – que sempre teve o costume de cozinhar para os amigos – fala sobre as experiências vividas com as pessoas que recepcionaram a equipe da websérie para dividir a mesa e conversar sobre vários assuntos enquanto os pratos eram preparados. Após um giro pelo Peru, ano passado, o “Soul kitchens project” passou por Minas Gerais em janeiro, incluindo no roteiro Juiz de Fora (onde esteve no último dia 10), Belo Horizonte, Ouro Preto, Mariana, Ibitipoca e Barbacena. As próximas paradas serão divulgadas pela fanpage da iniciativa (www.facebook.com/soulkitchensproject), em que os interessados a colocarem mais alguns pratos à mesa podem se candidatar a ser os próximos anfitriões. Então… quem se habilita?

Tribuna – Como e por que surgiu a idéia do “Soul kitchens project”?

Cissa Borges – Estava repensando minha carreira profissional (trabalhava na área de planejamento de conteúdo) e tinha acabado de dar uma palestra na Faculdade Católica de Brasília, foi quando senti saudade da paixão típica dos estudantes. Quis buscar algo novo. Sempre gostei de cozinhar e estudava por interesse próprio a comida como sistema de comunicação. Saí do trabalho fixo na época e elaborei o “Soul kitchens…” com a proposta de ser um registro de encontros entre amigos ou famílias para cozinhar e comer juntos. O conceito era esse, captar os vínculos afetivos, as trocas, os papéis sociais da comida nessas relações, mas de forma divertida, sem a chatice de toda a literatura teórica e dispensando também formatos clássicos de programas de TV. Para isso, era importante que a equipe fosse formada por amigos, todos apaixonados por comida. Foi assim que o projeto chegou à Mata Hari, produtora da Luciana Baseggio e Lilian Ferrari, em Porto Alegre (RS). Vivemos a primeira experiência de gravação em Lima, no Peru, em setembro de 2014, sendo recebidos por uma família desconhecida para o almoço. Foi incrível, principalmente para entender que há no projeto uma grande entrega emocional. O conceito estava provado, colocar mais pratos na mesa significa sim uma disponibilidade afetiva muito intensa. Para cada destino convidamos um cozinheiro profissional que fuja desse estereótipo de chef. Para Juiz de Fora, chamamos o chef argentino Javy Larroquet, que tem um projeto chamado “Cozinhando com sotaque” (www.facebook.com/cozinhandocomsotaque).

– Por que visitar pessoas comuns?

– Porque são essas pessoas que realmente vivem a cozinha. Para pessoas comuns, cozinhar não é um hobby, não tem glamour, é uma imersão cotidiana. Celebridades cozinham esporadicamente, com bons produtos, equipamentos semi-profissionais. Nós queríamos conversar com quem dedica tempo à cozinha. No Peru, Dona Nancy, uma de nossas anfitriãs, cozinha há 14 anos para a família toda. Ela passa quatro, cinco horas na cozinha todos os dias e, até nosso encontro, ninguém tinha parado para agradecê-la. Nem ela tinha ideia do quanto sua disposição e carinho com a cozinha são importantes para aquele grupo familiar. Em Juiz de Fora, o Flávio Abreu divide apartamento com mais três amigos e é conhecido pela turma por cozinhar bem. Ele gosta de preparar os pratos, e seu grupo reconhece isso. Vimos ali uma interpretação social do “cozinhar” diferente da realidade da Dona Nancy. Flávio já deu aula em Ibitipoca de reeducação alimentar, fez trabalhos sociais com detentos em Juiz de Fora e tem várias experiências sociais inspiradoras. Achamos que ele, quando cozinha, continua exercendo esse seu grande senso de humanidade, de cuidado coletivo, transferindo o que aplica na arteterapia para a cozinha.

– A websérie foi inspirada em algum projeto?

– Não. Na TV há uma superlotação de programas de culinária e não gostamos desse conteúdo que, em regra, coloca a comida como objeto de competição, distante do cotidiano, ou simplesmente sugere que todos os pratos feitos no ar ficaram ótimos. Até o programa que se propõe a ir até a casa das pessoas produz a cena, tira o paninho surrado, troca o pote de sal já desgastado pelo uso. No “Soul kitchens” não tem produção, e isso não existe na TV.

– O “Soul kitchens project” tem algum tipo de financiamento/patrocínio?

– Duas passagens aéreas para o Peru foram pagas com verba do edital de Intercâmbios Culturais da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro. Os demais gastos saíram do nosso bolso. Nessa expedição por Minas Gerais, temos o apoio da marca De Lá, que vai atrás de pequenos produtores, incentiva a profissionalização do que eles produzem e leva esses produtos para o que chamam de “ponto de encontro”: uma loja em Belo Horizonte, onde os consumidores podem encontrar essa produção artesanal. A gente quer ter ao nosso lado só iniciativas verdadeiras como essa. Ainda sai muita coisa do nosso bolso, mas esperamos que marcas e projetos se interessem pelo patrocínio da websérie.

– Quais foram as reações dos primeiros moradores procurados?

– Nós anunciamos na fanpage a cidade que iremos e perguntamos se alguém, que gosta de cozinhar, gostaria de colocar mais pratos na mesa. Os seguidores marcam os amigos e assim vai se formando uma rede de indicações.

– O que levou à escolha de Minas Gerais?

– A comida mineira é uma das mais amadas do Brasil. Eu sou mineira, neta de duas cozinheiras e foi em Uberlândia que aprendi a valorizar a comida. Passei a infância nas plantações com meu avô, agricultor, conhecendo de onde a comida vem. Desde criança, passava horas à beira do fogão vendo a mágica toda acontecer. Minas Gerais era um destino óbvio, minha memória afetiva culinária vem daqui.

– O que aconteceu de mais especial em JF?

– Perguntamos pela fanpage quem toparia colocar mais quatro pratos na mesa para nosso time. O Cris Di Spirito apareceu e disse que dividia apartamento com amigos, e que um deles, o Flávio Abreu, queria cozinhar para nós. O mais especial foi ver aquele grupo – Flávio, Cris, Romaniff Mendonça e a alemã Anna-Lena Steen, que moram juntos no Alto dos Passos, e a amiga deles, a Mariana – tão aberto para a troca. Flávio é muito afetivo, é um ótimo contador de histórias e passou horas cozinhando e narrando muitas de suas experiências. Saíram gargalhadas, mas nos emocionamos em muitos momentos, compartilhamos histórias de vida. Falamos de carnavais, de viagens, sobre aprender alemão (Anne está ensinando a língua para eles), moda, amigos, sonhos e comida. Sem roteiro, na fluidez de uma prosa.

– Quais pratos foram preparados?

– O Flávio fez torresmo, polenta frita, aipim, arroz integral com jiló, feijão marrom, farofa e salada (com pepinos baby, que não conhecíamos). Muita coisa ele trouxe do sítio de uma amiga, outras compramos juntos no sacolão perto da casa deles. Tomamos cervejas e um pouco de cachaça curtida pela mãe do Cris. Voltamos a Juiz de Fora no último dia 15 para o ensaio do bloco de carnaval deles, o Bloco Realce.

– O que se tira de mais interessante dessas visitas?

– Novos amigos. Compartilhar a mesa significa muito: as histórias de vida aparecem, a entrega é muito grande. Acabamos de entrar por uma casa, mas, neste momento à mesa, o fato de dividirmos a comida nos torna amigos de infância. Falamos sobre os pratos e como aquelas receitas chegaram ali. Mas a comida narra mais que isso: a história do sujeito, do cozinheiro, o porquê daqueles temperos, daqueles pratos. Acabamos falando sobre herança familiar, transferência de conhecimento, lembranças. O mais interessante é descobrir pessoas incríveis através da comida.

– Quais os pratos mais inesperados que foram preparados?

– No Peru, eu não gostei de tamal, uma pamonha salgada que é vendida em lata. Dona Nancy, que recebeu a gente, ofereceu como petisco antes do almoço. Em um dos episódios do Peru, as pessoas irão ver a cara que fiz quando comi tamal; impossível ver essa reação na TV, onde toda comida tem a obrigação de parecer boa. Dona Nancy sabe que tamal não me agradou, assim como sabe que ají de galinha foi o prato que mais gostei, inclusive aprendi a receita e reproduzi para os amigos no Brasil.

– Quando os vídeos poderão ser vistos no YouTube?

– Cada destino terá dois episódios de 15 minutos. Temos dois episódios no Peru, em varias cidades de lá, e agora estamos produzindo os dois episódios de Minas. Todo esse material estreia em abril.

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