Desigualdade na UFJF: professores não-brancos são apenas 18% do corpo docente
Situação acarreta diversos problemas para os alunos e atesta a persistência de uma dificuldade de acesso às instituições públicas
Na Universidade Federal de Juiz de Fora, 81,9% dos professores se identificam como pessoas brancas. De um total de 1658 professores, eles são 1358, de acordo com dados do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape) consultados em 2023. Apenas 18% do atual corpo docente não é branco – são 231 pessoas pardas, 18 pessoas amarelas e 47 pessoas pretas nessas posições. Esse cenário de desigualdade racial é ainda mais acentuado que no restante do Brasil, onde o número de professores negros é a metade do número de professores brancos, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Mesmo entre os professores substitutos da universidade, que entraram recentemente para dar aulas, o cenário se mantém bastante próximo. Diante dessa situação, que acarreta diversos problemas para os alunos e ainda apresenta uma dificuldade de acesso às instituições públicas, a Tribuna entrevistou profissionais que se dedicaram a um olhar sobre o tema.
Para Wilian Cruz, professor do Departamento de Matemática que possui pesquisas sobre número de negros no quadro profissional da UFJF e temáticas étnico-raciais nas pesquisas de pós-graduação, o racismo estrutural ainda é impeditivo para que esse quadro se transforme. “Esse racismo impede, muitas vezes, de ter uma educação de qualidade, principalmente onde estão os jovens negros e negras do Brasil. E isso vai trazendo reflexos em diferentes níveis”, explica. Na universidade, nas pesquisas que já realizou, compreendeu inclusive que há áreas do conhecimento em que esse acesso é mais restrito e tem índices de representatividade mais chamativos. “Estamos sempre, todos os dias, tendo que provar que negros também têm condições de desenvolver pesquisas e estar nas salas de aula. Ainda hoje, tem gente que comenta comigo que nunca tinha tido um professor negro em sua formação”, conta.
Com a implementação das cotas na graduação, em 2012, o perfil do estudante que podia acessar a universidade começou a mudar. Mas, para que um corpo docente refletisse a quantidade de pessoas negras do país, que, de acordo com o IBGE, é de 56%, ainda é preciso mais mudanças. De acordo com Julvan Moreira, professor da Faculdade de Letras e diretor de Ações Afirmativas da UFJF, no caso particular da UFJF houve uma alteração nas cotas de concursos públicos que pode ajudar a trazer uma mudança neste sentido. “Normalmente, os concursos docentes são apenas para uma vaga, em uma disciplina, então nunca são cumpridos aqueles 20% que a lei diz. Nós reconhecemos que isso é uma questão política, e não jurídica, e aí mudamos a metodologia. Adotamos os 20% não no concurso, mas no edital em que saem todos esses concursos, tendo agora vagas reservadas para cotistas. Isso já tornou possível a entrada de docentes negros, e é uma medida importantíssima, a respeito da qual muitas universidades já nos consultaram”, explica.
Uma outra medida que ele destaca é a aprovação de cotas na pós-graduação, hoje etapa obrigatória para a trajetória profissional de futuros professores. “Temos as cotas que foram aprovadas para todos os nossos cursos de pós stricto sensu, com reserva. A possibilidade de ter mais doutorandos se formando nos nossos programas de pós gera mais pessoas negras que podem concorrer em concursos para docentes no futuro”, destaca. Além de permitir o acesso de mais pessoas negras nas universidades, conforme ele sinaliza, é necessário criar recursos para possibilitar que esses talentos sejam retidos. “É preciso ter políticas de assistência estudantil, como moradia e transporte para que esse estudante permaneça na universidade. Por isso, a gente precisa também dessa ampliação”, afirma.
Ausência de representatividade impacta alunos
A ausência de representatividade, no entanto, afeta a formação de diversos alunos e até mesmo a sua socialização. “Os jovens e até as crianças negras, nas escolas, sem essa referência, passam a ter um caminho mais difícil. É preciso referências para que eles almejem e enxerguem o que querem ser um dia”, afirma Julvan. Da mesma forma, Wilian destaca que essa ausência de representatividade também gera um racismo epistemológico, em que apenas certas visões de conhecimento são privilegiadas. “E nós também estamos tendo um despertar da nossa negritude, e é importante deslocar o eixo do conhecimento eurocentrado para o conhecimento afrocentrado, ajudando a gente a mudar mesmo as concepções que temos sobre a população negra e sobre o conhecimento de forma geral”, afirma.
Sobre este assunto, Julvan enxerga que é necessário também que as referências teóricas sejam referências dessas cosmovisões indígenas e africanas, rompendo com esse racismo epistemológico de impor modelos de ciência e de filosofia apenas do ocidente. “Outras culturas também têm saberes e conhecimentos que são negados nos currículos das universidades. (…) Com essas pessoas produzindo conhecimento, isso também pode ir mudando”, afirma. Mas, para ele, há um motivo para a demora nesse processo: “As mudanças são lentas porque também há resistência. Existe um outro grupo que sempre permaneceu nesses espaços e vai resistir para não perder esses espaços para outros grupos”.
O pessoal é coletivo
Ambos os professores pesquisadores entraram como docentes na universidade muito anteriormente ao sistema de cotas e representam uma exceção dentro dessa história de desigualdade que atrapalhou tantos outros. No caso de Julvan, o que fez diferença para que isso fosse possível foi justamente uma bolsa de estudos oferecida no trabalho de seu pai. “Eu nasci em Além Paraíba, meu pai era peão e minha mãe lavava roupa para fora. Eram pessoas empobrecidas. Eu consegui dar continuidade aos meus estudos porque meu pai trabalhava em uma fábrica de tecidos que tinha bolsa de estudos para os filhos dos trabalhadores. Mas consegui sem ter a presença de colegas negros e negras. Isso é uma grande dificuldade, porque na verdade a gente se sente muito sozinho, muito isolado. Senti isso na escola, lá atrás, e sinto isso ainda hoje no trabalho na universidade”, afirma.
Assim como ele, Wilian enxerga que, estando na universidade, consegue ver o quanto ainda é preciso caminhar e até mesmo reconhecer a negritude. “Eu enfrentei muitos obstáculos, muitas situações que poderiam ter me impedido de ter o acesso ao ensino superior ou ao meu cargo. E que também tornaram esse acesso mais lento. Quantas vezes escutei que esse espaço não era pra mim e que não me pertencia, por exemplo. Quando conhecemos outras pessoas negras, outros autores, mergulhamos nos estudos sobre a negritude, entendemos que isso faz parte desse contexto social que sempre quis nos limitar”, afirma. Essa lógica é tão predominante que, como ele explica, faz com que essa população também duvide da própria capacidade. E ele destaca que isso precisa mudar: “A universidade é nossa, é de todos. Nós, negros e negras, temos que ter isso em mente e assumir isso. Só vamos conseguir isso com um trabalho conjunto. Não existe meritocracia se as oportunidades não são dadas aos diferentes de formas diferentes”.