Degustar um vinho é, invariavelmente, apaixonar-se ou não por ele
Na minha coluna de estreia na Tribuna, falo sobre o conteúdo que pretendo trazer para este espaço e já começo com a verdade “nua e crua”: é, ao mesmo tempo, muito difícil e muito fácil entender (e falar!) de vinho. Descubra o porquê.
Caríssimo “Enoleitor”:
Passei alguns dias dando “tratos à bola” (literalmente sofrendo!) para decidir qual seria o melhor assunto a ser abordado nesta minha estreia como colunista de vinhos da Tribuna.
Que responsabilidade! Escrever uma coluna de vinhos por aqui!
Fiquei me perguntando o que você já conhece sobre o mundo do vinho e quais tópicos seriam interessantes ou úteis o suficiente para que você venha a dedicar alguns minutos do teu dia lendo meus textos.
Talvez este devesse ser um espaço para esmiuçar noções bem basiconas. Ou quem sabe, ao contrário, não seria melhor focar em tópicos mais técnicos, repletos de informações objetivas, dados de pesquisa, fatos e números? Com certeza, tentar “lacrar” com um extenso e impressionante “estatuto do vinho” viria a calhar. Contudo, para você, independentemente da minha abordagem, a questão sempre será: “será ela uma verdadeira autoridade no assunto? Posso confiar?”.
Confesso que sempre questiono as minhas fontes de informação e sou a primeira a te incentivar a selecionar o conteúdo que você consome.
Cheguei à conclusão, portanto, de que este espaço pode abranger um pouco de tudo, do jornalístico ao técnico, desde que eu seja absolutamente honesta, principalmente comigo mesma. Opto por seguir o meu instinto e conversar sobre vinho com você da mesma forma que o vinho “conversa” comigo: com muita paixão.
A verdade nua e crua, já escancaro aqui hoje: é, ao mesmo tempo, muito difícil e muito fácil entender (e falar!) de vinho. Explico.
O vinho é um produto que pode ser analisado sob duas óticas opostas: a objetiva e a subjetiva.
Objetivamente, é o resultado de uma transformação química, um capricho da natureza descoberto, fortuitamente, pelos homens, há milhares de anos atrás. Ninguém “inventou” o vinho, nem mesmo o infame deus Baco, como insiste a mitologia. Este néctar, obtido do fermentado de uvas, pode ser estudado e compreendido.
Os processos de cultivo das uvas podem ser domados e otimizados, adaptados de acordo com as particularidades de cada local em que as frutas são plantadas. As etapas de vinificação são decididas pelos enólogos e vinhateiros, formatando o produto final que chega às nossas casas. Tudo faz parte de um cuidadoso processo, baseado em ciência, tecnologia e conhecimento, que foi aperfeiçoado através de muitos anos de pesquisas, complementadas, certamente, por uma boa dose do bom e velho método da tentativa e erro.
Você já deve ter presenciado aquela prosopopeia do “enochato”, todo garboso, frente a uma taça de vinho. Com ar de superioridade, gira e mergulha o nariz na taça, enche a boca com o líquido, dá uma barulhenta bochechada, engole e, para o teu desespero, começa a listar aromas surpreendentes, misteriosos e incompreensíveis à “limitada capacidade” de simples mortais. A estas alturas, você já está chamando um Uber, afinal, é muita firula para uma simples dose de bebida alcoólica e você não é obrigado!
Apesar dos exageros dos mais exibidos, esse ritual de degustação, tem seu propósito e é fundamental para que o vinho seja objetivamente analisado e compreendido. Os variados aromas detectados pelos especialistas são reais, estão presentes na natureza e são reproduzidos nos vinhos justamente por eles serem, fundamentalmente, um amontoado de moléculas químicas. A nossa capacidade para identificar esses aromas contudo, depende da nossa própria habilidade para “catalogar”, conectar e reconhecer um “cheiro” familiar, existente em diferentes fontes. E esta habilidade, como tudo na vida, pode ser treinada e praticada, à exaustão, por qualquer pessoa. Não, superpoderes ou um super nariz não são pré-requisitos para que você se torne um exímio degustador.
Outro aspecto bastante pragmático e, muitas vezes, delicado, a ser analisado sobre o vinho é o simples fato de ele ser a fonte de um negócio. Ninguém faz vinhos por filantropia. Certamente, existem os indivíduos que produzem vinho para o seu próprio consumo e deleite, mas estes são minoria. O mercado de vinhos é um mercado milionário. Romantismos e ilusões à parte, a indústria é fonte de altíssimos lucros e sustenta o comércio de luxo, o lifestyle de celebridades, o ego dos emergentes e a ambição dos inescrupulosos.
Concomitantemente, é a fonte de subsistência de famílias simples do campo, trabalhadores rurais que derramam sangue, suor e lágrimas, literalmente, de sol a sol, para que o vinho chegue nas mãos dos consumidores e a comida em suas próprias mesas.
Para a tua alegria e para a sorte desta que te escreve, a maioria dos vinhos do mundo, ao contrário do que possa parecer, não é cara ou inacessível. Além disso, ainda mais importante é você saber que, para beber e gostar de vinho, não é necessário entender os seus aspectos técnicos, pois o vinho transcende a razão. Para começar a apreciar a bebida, você vai precisar de apenas duas coisas: comprar uma garrafa (sim, você vai ter que gastar uns tostões) e usar a tua imaginação ao abri-la.
Ao servir um vinho na taça, pense nas várias histórias que existem por trás daquele rótulo.
História, você pergunta? Sim! Você já deve ter ouvido, inclusive, algumas notórias, como a suposta invenção do Champagne, por Don Pérignon; ou como Napoleão distribuía vinho para seus soldados antes de seguirem para os campos de batalha; deve ter lido sobre raríssimos rótulos descobertos em abandonados celeiros de guerras; provavelmente, já se surpreendeu com vexames globais, como a venda de garrafas falsificadas, por valores obscenos, em leilões famosos, e por aí vai (e já temos pauta para um ano, pensando bem).
Cada garrafa de vinho carrega o mundo de alguém: uma amizade, um amor, um sonho, uma visão, um desafio, um triunfo, um desapontamento, uma teimosia, uma aposta, uma primeira vez, uma última chance.
E é por tudo isso que o vinho é mais do que uma bebida alcoólica: ele é um milagre da natureza, sistematicamente domado pelo homem, através dos tempos. As melhores uvas, nas melhores mãos, dão origem a bebidas que nos enchem de prazer e emocionam, intrigam, surpreendem e nos instigam a querer saber e provar, cada vez mais.
Para ser sincera com você, reconheço que, para um indivíduo realmente entender e falar de vinho, é preciso muito estudo e dedicação. Ainda assim, quanto mais a gente estuda, mais compreende que nunca conseguirá dominar todo o assunto e, muito menos, provar todos os rótulos do mundo.
É durante um momento libertador, entre uma taça e outra, que a ficha cai: muito mais do que conhecimento, é preciso uma boa dose de subjetividade (e por que não, de criatividade e imaginação) para interpretar e comunicar a linguagem do vinho. E este será o meu maior desafio aqui: fazer com que você se apaixone pela “personalidade” (a minha, inclusive) e não somente pela “aparência”. Vou te oferecer meu conhecimento, que está sempre em evolução, mas, acima de tudo, meu objetivo será fazer com que você se sinta cada vez mais à vontade frente a esse, a princípio, misterioso e complicado universo.
Tenha sempre em mente que degustar um vinho vai além do ato de apenas bebê-lo. Degustar um vinho é apreciá-lo em todas as suas formas, utilizando todos os teus sentidos. A degustação é objetiva (baseia-se na ciência), mas é totalmente influenciada pela subjetividade (que envolve as tuas emoções, o ambiente em que você está, com quem está, a tua experiência prévia de vida).
Gostar ou não de algo é o reconfortante equilíbrio alcançado após uma intensa batalha entre razão e emoção. Assim sendo, degustar um vinho é, invariavelmente, apaixonar-se ou não por ele.
Bem-vindo ao meu “cantinho”. Aperte o cinto e embarque comigo nas “viagens” que faremos juntos por aqui, da vinha ao vinho!
Saúde e até breve!