Construída e carregada por mulheres: conheça as histórias do Bairro Santa Cândida
Moradores do bairro, Adenilde Petrina e Stain, contam a história do lugar que se ergueu a partir da força feminina, do conhecimento, da comunicação e do hip hop
Saber o que aconteceu no passado para continuar. É um ciclo ainda alimentado no Santa Cândida, Zona Leste de Juiz de Fora. Isso porque se levar em conta a história do bairro, sua ocupação é recente. As pessoas responsáveis pelas primeiras construções e suas famílias ainda estão ali. Lembram, já que não há como se esquecer disso, de como era aquele morro: sem calçamento, sem água, sem luz, sem esgoto. As casas, em sua maioria, eram de madeira. Esse era o lugar possível para diversas pessoas que, ainda naquela época, precisavam estar próximas ao Centro da cidade para trabalhar. As casas também eram construídas do jeito que se podia – tudo para sair do aluguel: o teto todo seu. De fato, levando em conta as distâncias físicas, bastam algumas viradas e mais alguns morros e, pronto, lá está o Candinha.
Essas lembranças permeiam as gerações. Os jovens de hoje sabem bem, inclusive, que, mais que isso, quem levantou e carregou o bairro foram as mulheres. Isso porque eram elas que ficavam em casa, dia e noite, cuidando dos filhos e lidando com as condições da casa. Eram elas que precisavam ir dia a dia à mina buscar água. Eram elas que, na falta de uma escola no bairro, dormiam na fila para matricular os filhos em instituições de bairros vizinhos. Foram elas as primeiras a perceber que essa dinâmica era desfavorável.
Luta pela vivência
Adenilde Petrina Bispo viveu essa dinâmica. Quando chegou ao Santa Cândida, encontrou o bairro nessa situação. Sua família encontrou morada ali. Com o tempo, ela, sua mãe e irmãs foram descobrindo quase que macetes para fazer com que as coisas fossem mais fáceis. “Aqui em casa, junto com minha mãe, a gente descia depois das 22h, porque a mina estava vazia e a gente ia mais rápido.” Mas toda essa dinâmica necessária para a vida, já a deixava incomodada. “Porque eu trabalhava, estudava à noite e depois que eu chegava da escola eu ainda tinha que pegar água, ajudar em casa. E eu ficava indignada.” Foi por isso que um só convite foi o necessário para mudar tanto a vivência no Santa Cândida quanto a própria vida de Adenilde.
Dona Aparecida, também moradora do bairro, passou a organizar mulheres para pedir, no primeiro momento, água, luz, esgoto e calçamento. E elas foram conseguindo esses direitos. O primeiro passo foi a fundação de uma associação de moradores. “E a gente ia à prefeitura cobrar. E tudo com muita persistência e dificuldade. A gente tomava chá de cadeira na prefeitura. A gente penou bastante para conseguir.” Com o tempo, outras necessidades foram sendo incluídas: escola, igreja, ônibus. E era um período da história bem difícil: ditadura militar.
Com a chegada das Comunidades Eclesiais de Base, ligadas à Igreja Católica tendo como base a Teologia da Libertação, era preciso encontrar formas de fazer com que os encontros acontecessem. Cada rua, como conta Adenilde, tinha seu núcleo. Uma vez por mês, todo mundo encontrava. “A gente falava o que estava lendo, o que a gente podia fazer e o que precisava para melhorar a vida do povo do Santa Cândida, A gente foi firmando, aprendendo que tudo isso era um direito nosso, que a gente era ser humano, era inteligente e merecia respeito. O movimento deslanchou.” Dona Aparecida, no entanto, mudou-se do bairro. “E isso ficou na nossa mão. Nas mãos das pessoas que ela ensinou e puxou para o movimento.”
‘A gente usava o teatro até para exigir os nossos direitos’
Quase que ao mesmo tempo, a arte foi entrando na vida de Adenilde. E ela foi entendendo que ela é, sim, aliada nas causas políticas. Ainda na época da ditadura, Adenilde participou de uma oficina, com artistas argentinos, sobre o teatro do oprimido, um método elaborado por Augusto Boal. “A gente aprendeu as técnicas e trouxe aqui para o morro. A gente usava o teatro até para exigir os nossos direitos. Para a gente conseguir condução, teve que fazer um teatro invisível dentro do ônibus. Fomos parar na delegacia de Santa Terezinha. O dono do ônibus não queria soltar a gente, porque alegou que tínhamos quebrado alguma coisa, e era mentira. Nosso teatro começou às 18h, que era o horário que o ônibus saía lotado da Vila Alpina, e só voltou para casa 1h da madrugada, e a minha mãe nem sabia onde eu estava”, ri, agora, lembrando da ocasião. “O teatro era forma de educação, diversão e reivindicação também.”
Apesar de tantas conquistas, Adenilde conta que, na época, não tinha noção do poder que tinha. “Fazia porque fazia.” Só foi entender isso recentemente, quando leu “O que é empoderamento”, da arquiteta, urbanista, escritora feminista Joice Berth. “Eu li e vi que o empoderamento é coletivo. A gente já era empoderada porque a gente que praticamente carregou o Santa Cândida e construiu o Santa Cândida. A gente já era empoderada e não sabia.” Mas, ainda assim, na medida em que se percebiam que a vida alterava para melhor, cada conquista era celebrada. “A chegada desses benefícios aqui para o bairro foi feita como uma luta nossa, uma caminhada que a gente fez. As travessias que a gente ia fazendo na caminhada para conseguir o que a gente queria. Foi tudo celebrado como uma vitória, um direito nosso.”
Uma década de rádio comunitária
Anos mais tarde, outro marco no Santa Cândida: a construção da rádio Mega FM. Um dos irmãos de Adenilde teve a ideia de construir no bairro uma rádio própria para falar da comunidade e do mundo para a própria comunidade. “Muita gente achou que fosse devaneio dos meninos, eu mesmo achei que não fosse dar certo. E eles lutaram para conseguir os equipamentos. A maioria era emprestada. Depois, todo mundo queria fazer programa. Só não valia músicas que não trouxessem informação. Tinha que trazer informação porque a rádio, para os moradores, era uma maneira de falar quem a gente era, que a gente tinha poder e inteligência. Por isso que ela chamou Mega FM que, em grego, quer dizer estrondo.” Adenilde demorou a entrar, mesmo, na rádio. Ela, no primeiro momento, ajudava a limpar o estúdio. “Eu entrei porque eu vi que o rap puxava a meninada.”
Ela funcionou por 10 anos. “Por isso que nós todos ficamos muito bem informados e percebemos que informação é poder. A gente tentou a concessão, de tudo quanto é jeito, mas estava muito difícil, e o meu irmão falou: ‘A gente tem que pôr os cachorros todos para fora, falar tudo, para ninguém ficar com remorso depois que a rádio fechar. Vamos falar tudo’. E os nossos jornais eram impressionantes. A gente pesquisava as coisas na biblioteca dos padres redentoristas, através dos jornais e das revistas de lá, e falando na rádio.” Até que a Polícia Federal confiscou o transmissor. “Quando a Polícia Federal veio aqui, levou nosso equipamento e instaurou um processo contra nós, quando alguém da rádio ia prestar depoimento, ia todo mundo. Porque a rádio era nossa, ela deu orgulho para a nossa comunidade. Era interessante. A proposta que a gente fez, de levar informação, união, fraternidade, compromisso, consciência, nós fizemos.” Mesmo sentindo saudade dessa época, sente que a missão foi cumprida.
Berço do hip hop
Com o fim da rádio, Adenilde conta que a comunidade se sentiu, de certa forma, sem rumo. Mas vários embriões nasceram a partir disso. Por causa da rádio, por exemplo, Santa Cândida ficou conhecida para além de Juiz de Fora, e algumas parcerias foram firmadas. Um grupo de Brasília, também do hip hop, foi à comunidade para oferecer uma aula de grafite. “Meu primeiro contato com o grafite foi nas paredes da Adenilde”, afirma Stain, grafiteiro, bboying e articulador cultural. Aliás, antes disso, ele já ouvia a Mega FM e escutava os raps que tocavam na programação. Foi por isso que decidiu seguir esse caminho. E é por isso que quando se pergunta: “Por que o Santa Cândida tem tantos artistas?”, ele responde: “Por causa da Adenilde”.
Adenilde relembra algumas situações que, para ela, contribuíram para essa crescente de artistas. Uma delas são os bailes black que aconteciam no Santa Cândida, que possibilitaram o surgimento de vários bboying na comunidade. Depois, é claro, a rádio, que tocava os raps e influenciou, então, o surgimento de algumas rappers. E ela lá, de plano de fundo. “Eu entendi que a arte politizava através do hip hop, por causa dos quatro elementos: grafite, breaking, rap e o DJ. Cada um tem sua especificidade. Você manda informação através dos grafites que você faz. O DJ é praticamente o cérebro, porque ele que pesquisa as músicas, ele tem conhecimento da música dos anos anteriores para usar como beat e o rapper cantar em cima. E o rap é ritmo e poesia. Você tinha que ser poeta. E, para você fazer rap, você tinha que ter informação, você tinha que ler. O que junta a cultura e o mais importante é o conhecimento”, diz. Ela trabalhava na biblioteca redentorista e os rappers iam até lá para ler o que acontecia no mundo, e assim surgiam as poesias. “Criou uma união muito grande em torno do conhecimento. Tem muita gente que fala que a cultura hip hop salvou, e a gente fala que o que salvou foi o conhecimento que você adquiriu dentro da cultura hip hop.”
E Stain seguiu esse rumo. “Eu fui descobrindo a arte e o hip hop, que tem quatro elementos artísticos, mas vai muito além deles. Eu me encontrei mais dentro do breaking e do grafite. O Hip hop é uma cultura que tem as questões das favelas, dos morros, e isso chegou em uma linguagem muito fácil de entender, por isso que eu quis fazer isso.” Hoje, o bairro é lotado de muros pintados por ele. E isso, inclusive, ultrapassa a área da comunidade. E, ainda assim, ele segue levando o nome do Santa Cândida para Juiz de Fora inteira. “O Santa Cândida é minha referência total. Esses morros que eu desço para ir ao condomínio mais caro de Juiz de Fora. Por esses morros também que eu desço para ir dar aula em uma quebradinha e é para onde eu volto. Aqui é onde eu reúno todos os meus conhecimentos e experiências para fazer mais trabalhos por aí. Foi aqui que eu comecei a dançar, a pintar, é aqui que eu treino minhas técnicas novas, no muro de vizinho. É praticamente meu ateliê. Eu gosto muito daqui. Aqui é onde eu aprendi tudo. Não tem como não voltar pra cá. É por isso que o quinto elemento do hip hop é o conhecimento. Não adianta só saber pintar, dançar, tocar, sem saber compartilhar isso. A questão é sempre compartilhar com outras pessoas. Por isso que eu me tornei articulador cultural também. Não é todo bairro que dá a oportunidade de experimentar tudo. Da capoeira, ao grafite, ao break, ao rap, funk com a MC Xuxu. Eu costumo falar que Candinha é só lazer por isso, porque tem muito movimento artístico acontecendo aqui.”
Construir uma nova narrativa
Mas até essa abertura de fronteiras invisíveis tem braço da Adenilde. Outro embrião do Santa Cândida é o Vozes da Rua. “Quem sustentava eles era a rádio, através dos programas. A gente se viu meio abandonado, e precisou caminhar com as próprias pernas. Aí, surgiu a Armadilha do Gueto, dos meninos do Santa Cândida, e eles queriam, através do grupo, desmanchar as armadilhas que o capitalismo fazia aqui dentro do bairro. Durou até quando a gente percebeu que o bairro se transformou, muita gente nova chegou, as periferias começaram a ficar violentas, e a gente mudou a narrativa.”
Adenilde segue: “A gente viu que o pessoal tinha medo de subir aqui e o pessoal daqui não queria descer para o centro da cidade porque eles não se sentiam donos da cidade, a cidade não era deles. A gente não sentia que o centro da cidade nos pertencia. Era só ir lá para trabalhar, comprar alguma coisa e aqui que era o nosso lugar”. O coletivo passou a levar para o bairro pessoas de outros lugares do Brasil. “A gente trazia o pessoal da cidade, juntava com o pessoal da Candinha, para mostrar que nós não precisávamos ter medo uns dos outros e que estávamos juntos na construção.” E, assim, surgiu o Vozes da Rua, que segue, até hoje, promovendo encontros sobretudo pela poesia para a transformação. “Hoje em dia, a posse vai se transformando, vem chegando gente nova, mas a essência é a mesma: levar informação, cultura, a transformação das pessoas através da arte e tentar mudar a narrativa que as pessoas têm da periferia.”
Adenilde fez do Santa Cândida sua casa. “Aqui é a minha casa. Eu aprendi com a minha avó que a gente deve florescer onde foi plantado. Nos plantaram aqui e firmamos aqui. É como se tivessem nos plantado no Santa Cândida, como uma flor, e a gente floresce onde vive.” Já Stain tem pretensões de mudar. Mas não sem levar consigo tudo o que viveu no bairro. “É legal mostrar que da comunidade vai sair além do pedreiro, faxineiro, sai também intelectual e artistas, pessoas com diversos tipos de profissão. Eu mergulhei nisso de cabeça. Eu só queria dançar minhas danças e pintar meus muros. É bom ver o que eu pintei aqui. Dá isso de pertencimento. Aqui eu tenho a real noção de que eu pertenço aqui.” Agora, para Adenilde, só falta uma coisa: “Aqui não tem uma praça por enquanto. O pessoal queria uma praça que a gente olhasse a cidade nos nossos pés. Pelo menos isso”.