JF tem 20% da população sem cobertura de UBS
Usuários que residem em área descoberta precisam ir a outros bairros para conseguirem atendimento; moradores de regiões como o Morro da Glória questionam o desuso de prédios que já abrigaram serviços de saúde
Cerca de 20% dos juiz-foranos não possuem cobertura de atenção primária à saúde, o que significa que esse percentual da população reside em áreas que não possuem uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de referência. De acordo com informações da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), atualmente, 51% das pessoas do município estão assistidas por unidades de saúde da família e 29% pelas UBSs tradicionais. Apesar disso, diversos bairros do município não contam com atenção primária de referência. Como é o caso do Bairro Morro da Glória e adjacências. Moradores da região, inclusive, questionam o fato de prédios que já abrigaram serviços de saúde no local estarem em desuso, obrigando a população a se deslocar para conseguir assistência. Tal fato, vai de encontro à diretriz da Atenção Primária em Saúde que visa à universalização do acesso e a integralidade do cuidado em saúde.
Morador do Morro da Glória, Luiz Felipe Brigatto percebe que no bairro existe uma grande quantidade de idosos, crianças e outras pessoas que não contam com plano de saúde e necessitam da rede pública. Não ter uma UBS de referência dificulta o atendimento para a população, como no caso de sua mãe, de 74 anos, que é diabética e precisa se deslocar ao PAM-Marechal em busca dos serviços básicos.
“Essas pessoas estão na chamada ‘área descoberta’ pela prefeitura, o que é um absurdo se você for pensar nos direitos desses cidadãos, que ao necessitarem de qualquer tipo de recurso do SUS, precisam enfrentar as enormes filas do PAM-Marechal e ainda, muitas vezes, não se consegue sucesso. Sem contar que muitas pessoas não terão condições de se deslocar até lá. Agora, até o Pronto Atendimento Infantil foi retirado do bairro, ou seja, estamos realmente sem recurso algum.”
Há menos de um ano morando no Democrata, Laura Neves Ferigatto já sentiu os efeitos de não ter uma UBS na região. Grávida de cinco meses, ela buscou atendimento na unidade do Borboleta – a mais próxima de sua residência -, mas teve o serviço recusado por não ser moradora do bairro. “Os meus sogros moram lá, mas eu mesma, por não morar lá, não consegui atendimento. E, sem dúvida nenhuma, faz muita falta aqui para o pessoal da região”, comenta.
Desde criança, o jornalista Victor Dousseau já ouvia falar na construção de uma UBS no Bairro Manoel Honório, na Região Leste de Juiz de Fora, onde reside desde que nasceu, há 28 anos. Porém, a demanda da população local nunca foi atendida. “Sempre quando precisamos de algum atendimento, temos que nos deslocar às unidades centrais e também à UBS do Bairro Nossa Senhora Aparecida, que hoje em dia é a mais próxima. É lamentável um bairro do tamanho do Manoel Honório, com a população que tem, não possuir uma UBS”, comenta. “Recentemente, na campanha de vacinação contra a Covid-19, eu precisei me vacinar e eu fui na UBS do Nossa Senhora Aparecida. Eu, que sou jovem, tenho um deslocamento tranquilo, mas pra uma pessoa idosa que, às vezes, não tenha quem a levar, isso é dificultoso. Então eu acho que ter uma unidade básica aqui no bairro faz muita falta.”
Cobertura ampliada
Em 2018, a Tribuna publicou uma reportagem que mostrava que 28% da população em Juiz de Fora não possuía cobertura de serviços básicos de saúde. Na ocasião, o número representava cerca de 150 mil habitantes sem UBS de referência. O número de unidades permanece o mesmo na cidade desde então: 63.
Apesar de a PJF alegar que a cobertura em assistência básica ter aumentando no período, o Município não esclareceu o motivo pelo qual isto ocorreu. De acordo com a Secretaria de Saúde, das 63 UBSs, 15 são rurais e 48 atendem a região urbana. Dentro dessa estrutura, a atenção primária é composta por 107 equipes de estratégia de saúde da família, além de uma equipe de consultório na rua, com atendimento feito no PAM-Marechal.
Como destacado pela pasta municipal, houve uma estratégia da atual Administração de amplificação da atenção primária, como o horário de funcionamento estendido de nove UBSs no município, cujo atendimento acontece de 7h às 20h, de segunda a sexta-feira. Conforme a PJF, tal medida resultou em mais 36 mil pessoas sendo atendidas.
Além disso, a Prefeitura destacou investimentos no aumento de pessoal e qualificação dos profissionais. De acordo com a secretaria, houve a contratação de 41 novos médicos, 26 enfermeiros, 24 auxiliares de enfermagem e 5 farmacêuticos. “Garantimos a aplicação do piso nacional para os agentes comunitários de saúde e de combate às endemias e ainda contratamos mais 50 agentes combate à endemias que intensificaram a vigilância ambiental”, afirmou em nota.
Previsão de novas UBSs
Atualmente, Juiz de Fora tem previsão de implantação de novas UBSs no município. Uma está em construção no Bairro São Benedito, na Zona Leste, com previsão de entrega para o início do segundo semestre deste ano. Além disso, as obras da UBS do Jóquei I também se iniciaram. Conforme a PJF, está em andamento o processo de licitação de novas UBSs para os bairros Parque Independência e Manoel Honório. O executivo ainda adiantou que possui recursos para outras duas UBSs em áreas descobertas, informando que deve anunciá-las em breve.
“É importante destacar que a população da área considerada descoberta de atenção primária, ou seja, aqueles moradores em território que não tem abrangência de unidades básicas de saúde, tem o atendimento garantido pelo SUS, em Juiz de Fora, em alguns pontos estratégicos dos serviços de atenção especializada como no Pam-Marechal, Departamento de Saúde da Mulher, Gestante, Criança e Adolescente e Serviço de Saúde do Idoso, UPAs e outros.”
‘Atenção primária é essencial para prevenir doenças’
Mais do que ampliar o número de UBSs na cidade, é importante também fortalecer a cobertura já existente por meio de melhoria na estrutura física, da ampliação do quadro de profissionais e capacitação dos mesmos, especialmente para o modelo de saúde da família, avalia a coordenadora do curso de Enfermagem e do Programa Multiprofissional de Residência em Saúde da Família do HU-UFJF, Érika Andrade. Também conselheira municipal, a especialista aponta que Juiz de Fora tem caminhado neste sentido, com a ampliação do horário de atendimento em nove UBSs e a previsão de construção de novas unidades, como do Bairro São Benedito, na Zona Leste, e no Parque Independência, na Zona Nordeste.
“Idealmente, a organização do sistema de saúde foi pensada para que toda cidade, inclusive Juiz de Fora, tenha 100% de cobertura da atenção primária. Ela é a porta de entrada dos serviços do Sistema Único de Saúde e ordenadora da rede, que faz esse trabalho de regulação do que precisa ser encaminhado para os demais níveis de atenção”, explica. “Quando não tem essa cobertura em 100%, acaba que, de certa forma, sobrecarregamos os outros níveis de atenção do SUS, que são os atendimentos especializados e os serviços de urgência e emergência, porque essa população que não tem atendimento de atenção primária no seu território busca esses outros atendimentos para situações agudas e também para controle das condições crônicas, como hipertensão e diabetes.”
Além disso, a atenção primária possui um papel essencial na educação em saúde, auxiliando na prevenção de doenças. “A não cobertura de serviços básicos pode causar impacto na população, de modo geral, com a agudização das condições crônicas de saúde”, diz. “Isso pode trazer à tona problemas de saúde que antes estavam erradicados, como por exemplo, a meningite e o sarampo, que tínhamos uma boa cobertura através de vacinas e que, por falta de imunização e de serviços básicos que promovem saúde, estão voltando.”
Conforme a professora da UFJF, a atenção básica é a porta de entrada do SUS e está no centro da rede de saúde, filtrando demandas e possibilitando um retorno e continuidade no acompanhamento da saúde da população. “Pensar atenção primária consolidada, efetiva e resolutiva na sua essência é pensar literalmente em cuidar das pessoas, ao invés de apenas tratar doenças em condições de saúde muito específicas”, defende. “Para isso, essa atenção primária precisa ser boa na sua capacidade física e de recursos humanos, com profissionais bem treinados e que tenham carreira construída nesses territórios.”
UBS deve ser instalada no antigo PAM-Andradas, diz Governo federal
O prédio onde funcionava o antigo PAM-Andradas, na Avenida dos Andradas, Morro da Glória, Região Central de Juiz de Fora, foi desativado em 2018. Desde então, o imóvel, que pertence ao Governo federal, permanece sem utilização, sendo depredado ao longo dos anos. Porém, há tratativas para que um novo processo de cessão do espaço aconteça, de acordo com o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. “A Prefeitura tem o objetivo de instalar Unidade Básica de Saúde para o atendimento da população local”, informou a pasta em nota encaminhada à Tribuna. A reportagem questionou a administração municipal se haveria algum projeto para ocupação do espaço, porém, não teve resposta.
Como esclarecido pela Secretaria do Patrimônio da União, ligada ao Ministério, o imóvel havia sido cedido formalmente ao Município de Juiz de Fora para o funcionamento do Instituto da Saúde da Criança e Adolescente da Secretaria de Saúde. Entretanto, o contrato não havia sido renovado. Sobre a situação de abandono do espaço, o Governo federal informou que, de maneira periódica, “acompanha/fiscaliza os ativos sob sua gestão, com o apoio do aparelhamento de segurança e infraestrutura do Estado e Município”.
Diante da desassistência de serviços primários de saúde na região, a população questiona, justamente, o porquê do imóvel não ser utilizado para um equipamento de saúde. Carlos Alberto Dutra, técnico de enfermagem aposentado que atuou por mais de 20 anos no antigo PAM-Andradas, lamenta a situação que o espaço se encontra, especialmente após o Departamento de Saúde da Criança e Adolescente ser transferido para a Rua São Sebastião, em um local alugado. De acordo com ele, o imóvel na Andradas conta com mais de 20 salas que eram usadas como consultório.
“Aqui [no bairro] não tem UBS. O ideal seria voltar o Departamento de Saúde da Criança para cá, na minha opinião, porque se livrariam de um aluguel que não deve ser barato. E aí reformavam aqui. Aqui tinha vigia 24 horas. Tiraram os vigias, o departamento, e agora fica a Deus dará.”
Há três anos, ele se mudou para o prédio vizinho ao imóvel que abrigou o antigo PAM junto com sua mãe, de 89 anos. Na residência, eles presenciaram a degradação do espaço, que sofreu a invasão de vândalos e usuários de drogas. “Você chegava na janela e via eles com esquadrilhas de alumínio, com os portões, fiação. Eles roubaram tudo, detonaram isso aqui. Hoje só tem a carcaça”, conta. “Esse negócio é uma pena porque é um patrimônio.”
Comerciantes instalaram cercas no imóvel
Diante da situação de degradação do espaço, os comerciantes nas proximidades se uniram para colocar novos cadeados e cercas no prédio, a fim de, alguma forma, melhorar a segurança no local, de acordo com Vander Ferraz, proprietário de uma lanchonete na região. “Estou há 18 anos aqui. Peguei a época que era o PAM-Andradas. Mudaram daqui para a São Sebastião e, desde então, deixaram aqui abandonado, criando bichos, [sendo ocupado] por moradores de rua. Eu e o pessoal do comércio local pagamos para pôr cerca elétrica, para soldar pra não entrarem mais, porque estava prejudicando.”
Conforme o comerciante, o imóvel fica em um ponto com facilidade de acesso pela população, o que seria um fator positivo para utilização do prédio por parte do setor público. “O ônibus para na porta, é um local onde tem várias salas, que poderia ser mais bem aproveitado, mas ninguém resolve.”
Em 2021, o Centro Educacional Maria Helena, ao lado do imóvel onde funcionava o PAM-Andradas, teve um prejuízo de quase R$ 15 mil após ser invadido através de uma janela que havia no espaço, que foi quebrada, facilitando o acesso à creche-escola. Na ocasião, o centro educacional teve computadores, rádios de comunicação da instituição, eletrodomésticos, torneiras de bebedouros e alimentos roubados, além dos invasores quebrarem diversos objetos.
A costureira Rosângela Marcelina da Silva também está insatisfeita com o abandono do imóvel. Ela trabalha no prédio vizinho há 25 anos. “Só tivemos um pouco de sossego depois que nós, moradores aqui juntamente com os outros comerciantes, compramos cadeados e colocamos lá, porque arrombavam o portão. Foi quando acabaram roubando a creche”, conta. “Nós contratamos uma pessoa para limpar a frente porque tinha muito lixo, fezes, e arrumamos a cerca. Foi quando conseguimos trabalhar um pouco mais tranquilos porque pararam de entrar ali depois que nós arrumamos.”
Conselho debateu destinação de imóveis no Morro da Glória
A utilização do prédio onde funcionava o antigo PAM-Andradas é constante tema de discussão no Conselho Municipal de Saúde, de acordo com a presidente do órgão, Regina Célia de Souza. Na realidade, além do imóvel, outro prédio está em desuso na região. Desde 2017, o espaço onde já funcionou o Departamento de Saúde do Trabalhador, na Rua Cristovam Molinari, no Morro da Glória, está desocupado. Na avaliação do Conselho, o local também teria condições de abrigar um serviço de saúde na região. Atualmente, o serviço o serviço funciona no Centro de Vigilância em Saúde.
“Na época, quando ocorreu a mudança, havia uma condição do Conselho de que lá seria uma Unidade Básica de Saúde para cobrir aquele território. Depois, em outra discussão, achamos melhor fazer uma UBS onde funcionava o Instituto da Criança (antigo PAM-Andradas). Ficaram esses dois espaços, mas está tudo muito na fala”, explica. “O Conselho não está tendo êxito nessa discussão, de reforma ou de pegar esses espaços que são nossos para poder parar de pagar aluguel”.
A região do Bairro Morro da Glória, além de não ter uma UBS de referência e estar sem o PAM-Andradas desde 2018, recentemente também viu o Pronto Atendimento Infantil (PAI), que também funcionava na Avenida dos Andradas, ter sido transferido para um prédio anexo ao Hospital Maternidade Therezinha de Jesus (HMTJ), no Bairro São Mateus, Região Sul. De acordo com Regina, o Conselho não foi consultado sobre esta mudança. Além disso, o prédio do antigo PAM-Andradas teria sido cotado para instalação do PAI. “Por que fala na lei que a saúde tem que estar perto da pessoa? Porque [parte da ideia de que] ela não tem dinheiro. Então as pessoas conseguiam ir para o PAI a pé. Agora, não conseguem mais. Não é só essa região que ficou [desassistida], foi toda a cidade”, analisa.
Sobre a situação do PAI, a PJF informou que a transferência para a Maternidade ocorreu por conta de um questionamento sobre as inadequações da estrutura na Avenida dos Andradas, que seria alugada. “As inadequações eram tantas que os próprios servidores apresentaram a urgência dessa demanda para a prefeita”, diz no texto.
Como destacado pelo Executivo, as instalações do HMTJ possuem melhor qualidade e infraestrutura, além de contar com a retaguarda do hospital, a fim de melhorar o atendimento emergencial para as crianças. “O financiamento dessa estrutura é feito exclusivamente pelo Município de Juiz de Fora, sem a participação do Estado de Minas Gerais ou Ministério da Saúde.” A Prefeitura não comentou sobre a situação do prédio que abrigou o antigo PAM-Andradas e nem sobre o desuso do prédio da Rua Cristovam Molinari.