‘Quando cheguei, era mato e café’: histórias do Bairro Retiro
Moradores relatam como é morar em um dos bairros mais antigos da cidade, que já foi cafezal e fica escondido atrás do Morro do Santo Antônio
Não tem uma praça. Um ponto de encontro em comum. São morros e morros que desembocam em alguma casa de gente conhecida. “Onde mora dona Tica?”. Um transeunte responde: “É só subir e virar à esquerda”. “E Maria Geralda?” “Chega no viradouro e desce a vila. É no segundo poste.” É quase como uma cidadezinha do interior: com seus pontos de referência; as histórias que carregam de geração em geração. “Minha família viu o Bairro Retiro crescer”, conta a poeta Sophia Bispo. Silvania Aparecida Damião Martins, que trabalha na Escola Municipal Menelick de Carvalho, arremata: “Quando minha bisavó chegou, era tudo cafezal”. Sua mãe, Teresa Pinto Damião, a dona Tica, relembra: “Quando eu cheguei, era mato e café. Se tinha duas casas era muito”. Anos mais tarde, Maria Geralda Souza Lopes chega com sua família, no final dos anos 1980. O cenário, pela vila Santo Antônio, parte do Retiro, era parecido: “Quando a gente chegou (na vila), só tinha a casa da dona Santinha e do Zé Roberto. Não tinha água, não tinha luz. Lá embaixo (perto da linha do trem) tinha pouca casa também”.
A melhor definição encontrada para falar sobre a localização do bairro em relação a Juiz de Fora é dada por Sophia, que tem 17 anos e nasceu e ainda cresce no Retiro, onde sua família decidiu residir a partir dos anos 1970. “Quando eu falo do Retiro, as pessoas têm um certo preconceito do bairro. Porque, querendo ou não, a gente fica escondido da cidade. A gente está atrás do morro do Santo Antônio. Essa é a visão que a gente tem do mundo: a gente acorda e vê o morro do Santo Antônio. A gente não vê a cidade. E, às vezes, a gente está mais perto de Matias Barbosa do que do Centro de Juiz de Fora. É fácil a gente se sentir isolado, e as pessoas acham que é isso: a gente mora no meio do mato, muito longe. E não é isso. O Retiro não se resume a isso. Tem muita coisa por aqui.”
O desenvolver do bairro, as verdades e as construções que ele carrega, quem conta não são os livros nem os pesquisadores: são os próprios moradores que chegaram quando tudo era mato. Mesmo tendo chegado em Juiz de Fora, especificamente na região do Retiro, em 1988, Maria Geralda, que é educadora popular e militante, buscou pela história do lugar onde ainda reside e criou filhos e, agora, os netos. “Esse é um dos bairros mais antigos da cidade. Ele foi criado por um decreto de Dom Pedro, que passou esse terreno para um barão. Aqui era tudo lavoura de café. Quem residia aqui eram os escravos que apanhavam café. Hoje, quem mora, é descendente de escravos dessa época. Por isso, essa comunidade tem fortes mulheres negras.”
O café e o trem
Dona Tica lembra dos cafezais. Sua avó apanhava café na região. Seu pai, no entanto, trabalhava como funcionário da rede ferroviária. O trem, ainda hoje, é uma das marcas do Retiro. Foram principalmente o café e a rede que atraíram as pessoas para o lugar e foram fundamentais para a povoação. Muitas casas, por exemplo, foram construídas perto da linha do trem. O primeiro lugar onde dona Tica morou foi uma casa de barro às suas margens. Da época em que era criança, tem poucas memórias, mas lembra: “Nem tinha brinquedo e onde brincar. Era tudo mato. Não tinha rua não”.
Ela criou seus filhos no Retiro. Silvania, sua filha, faz o mesmo. E suas memórias são parecidas com as da mãe. Para mudar o cenário, o processo foi lento. “Quando eu construí, não tinha rua para ir para minha casa, era trilho. Entregava gás, móveis, compras na minha mãe e a gente levava pra casa, subia com as coisas no ombro. Era barro e atolava. Tinha nem carro para subir”, conta. Mas lugar para brincar, tinha. Ela lembra que era costume ter vários campos de futebol onde a criançada ia bater bola, entre outras coisas. Hoje, não tem mais por ali. “Brinca ou em casa ou em rua sem saída. Aí dá pra jogar bola lá. A gente se ajeita, né?”, conta dona Tica. Ela e sua filha estudaram no bairro, em uma escola que reunia em duas salas todas as séries. Só depois é que a Menelick de Carvalho ganhou outra dimensão. Atualmente, mesmo sendo do bairro, ela está em uma área mais afastada da comunidade, que eles nem consideram como sendo o Retiro.
Pensar coletivo
As mudanças de estrutura também foram fruto de uma coletividade, um pertencimento que habita ali. “Nós, por exemplo, não tínhamos igreja. Ela foi construída em um mutirão feito pelos próprios moradores”, diz Silvania. Sua mãe completa: “O lote foi doado e construíram a igreja. Ninguém pagava pelo pedreiro. Era na base da amizade. Hoje não é assim mais. Mas ainda tem muita amizade.”
Onde Maria Geralda mora hoje foi um terreno doado pela associação de moradores. Mas não tinha infraestrutura. Era difícil chegar. “A gente colocava sacola no pé para não sujar”, rememora. “O calçamento, a escada que a gente tem, a gente fez no mutirão, que foi 90% composto por mulheres. A gente fez no fim de semana.” Foi se deparando com essa situação de precariedade que ela decidiu se dedicar aos movimentos sociais. “Eu vim para os movimentos sociais por causa daqui. Quando a gente chegou aqui era muito difícil. E eu participei do movimento de moradia, porque a gente não tinha infraestrutura. Aí foi vindo luz e água, a gente ficou bastante sem água aqui, até ano passado. As pessoas chegam, se acumulam, e as políticas não chegam”, contesta.
“O bairro influencia tudo o que eu faço”
“A cultura é difícil chegar, porque não tem espaço”, acredita Maria Geralda. Mas sempre há formas de fazer com que isso aconteça. Ela mesma faz diversas atividades culturais voltadas para as crianças e aos jovens não só do Retiro, mas também de outros bairros da cidade. Já Sophia é exemplo de que a cultura reside ali. Hoje, ela é voz ativa da poesia através do movimento do Slam. Mas foi fundamental participar dos projetos das obras sociais do Retiro para descobrir o Slam. É principalmente nesses espaços que as crianças têm acesso a diferentes culturas. “É o nosso ponto de encontro e onde a gente se conhece”, define Sophia. Em uma aula de capoeira na comunidade, o professor falava sobre as cantigas e, ao olhar para Sophia, percebeu que ela tinha jeito de escritora. Ela já escrevia, mas não mostrava. Ele sugeriu que ela participasse do movimento. Ela passou a frequentar e, hoje, descobriu seu lugar, chegando a competir no Slam BR.
Ela afirma carregar o Retiro em tudo que escreve. “O bairro influencia tudo o que eu faço. É a visão que eu tenho do mundo, sem me deixar limitar por ela. Mas é de onde eu vim, onde estão minhas raízes. Como a minha poesia é sobre a sociedade, eu coloco a visão de quem morou e cresceu aqui perante a sociedade que a gente está inserido. Tudo o que acontece no exterior influencia minha escrita: seja emocional ou de maneira crítica”. Em suas poesias, Sophia fala da realidade do Retiro: das belezas, mas também da violência. Daquilo que ela sente estando lá. Em “É Brasil”, ela recita: “Povo guerreiro, filho da miscigenação. […] Ai, Brasil, me dói na alma ser sua filha escrava. […] Viver na minha cor, na minha pele, qualquer século é uma merda”. É um retrato do Brasil, mas também da história do Retiro e daquilo que ele carrega.
Tendo sua voz à frente das batalhas, Sophia serve de inspiração para fazer crescer a cultura no Retiro. “Aqui existe o começo de uma cena cultural. Temos como crescer e tem muita gente para ser descoberta. Vai ser legal ver gente saindo daqui de diferentes áreas. Eu inspiro outras pessoas sendo verdadeira e falando sobre o que eu sei falar. Quando eu apareço, por exemplo, no jornal, o pessoal do bairro fica feliz, porque a gente não vê o bairro e o pessoal do bairro sendo destaques, a não ser quando tem violência. Quando tem coisa positiva, todo mundo fica feliz. E isso quebra o preconceito que as pessoas às vezes tem da gente.”