‘Meu santo, meu bairro, minha cidade’: histórias do Bairro Santo Antônio
Moradores e pesquisadores contam a história do lugar onde Juiz de Fora começa; bairro é o protagonista da primeira matéria de “O Meu Lugar”, novo especial da Tribuna
Dona Candinha acha que já tem mais de 90 anos, apesar de, na certidão, constar 86. Isso porque alega que, antigamente, era normal, por exemplo, o pai registrar vários filhos de uma vez só: o que fazia com que as datas não fossem tão precisas. Apesar da idade, Candinha se senta no passeio de sua rua. “Para levantar, é só colocar a mão aqui e pronto”, justifica. E quando se senta ali, tomando um ar fresco, é como se viesse um filme na cabeça: “Quando cheguei não tinha nada disso aqui não”, diz, apontando para as casas que ocupam a Rua Francisco Pedro Severino, no Bairro Santo Antônio, Zona Sudeste de Juiz de Fora. O bairro é o protagonista da primeira matéria da série “O meu lugar”, especial da Tribuna que estreia neste domingo. A intenção é fazer uma imersão profunda nos bairros de todas as regiões da cidade em busca de boas histórias sobre estes locais. O Bairro Santo Antônio foi escolhido para inaugurar o projeto, que será mensal. A escolha pelo Santo Antônio é emblemática, afinal, foi dali que a cidade se desenvolveu, a partir do Morro da Boiada.
As memórias de dona Candinha são precisas: com a amiga Luíza – inclusive filha desse que dá nome à rua onde mora – e mais um bando de criança saía pelo lugar que tinha no máximo quatro casas há quase 70 anos. “Ali tinha muita árvore. A gente subia nelas para pegar fruta.” As crianças ainda subverteram até o medo colocado pelos mais velhos: “Falava que no Morro da Boiada havia um pedaço que era assombrado. A gente quando era criança era abusado. Ia lá pra ver se era mesmo. E voltava e falava que não tinha visto mão seca, não tinha visto nada lá. Diz que tinha uma mão seca lá. A gente não tinha o que fazer, ficava cavando assim com a mão uns terrenos, e achava uns pedaços de roupa, de osso”.
E segue: “O Rio Paraibuna era limpo. A gente saía daqui para ir para escola, porque aqui não tinha nada, e passava dentro do rio, limpinho. Minha mãe ainda gritava desesperada: ‘Candinha, sai dessa água’. E eu falava que a gente ia pegar peixe pra comer no almoço”. Aos poucos, mais imagens: “Tinha um lugar que vendia verdura. Mas não tinha igreja, não tinha padaria. Para comprar, tinha que ir lá embaixo. Os vizinhos batiam na porta e pediam uma coisa para o outro: pó de café, açúcar, vinha com o bornal e pedia arroz e feijão. Era uma família. Agora mudou”.
Dona Candinha é uma das mais antigas moradoras do Bairro Santo Antônio: lugar onde escolheu criar seus dez filhos e mais uma geração de netos, bisnetos e tataranetos. “Daqui só saio para o cemitério”, brinca. Ela mora bem ao lado de sua amiga Luíza, filha de Francisco que tinha o apelido de Chico Pinicão: foi sua mãe quem construiu o Sítio São Joaquim – que é onde tudo começou. Dessa época, pouco restou. Ficou, sobretudo, na memória de Candinha. “Luíza não lembra, está mais debilitada. Mas, às vezes, se colocar uma moda (música) ela até consegue lembrar de alguma coisa. Já minha mãe lembra bastante”, diz Rosilene Maria de Assis, filha de Candinha, também criada no bairro.
Mas antes de eles chegarem, aquela região já era povoada. É ali, no Morro da Boiada, que surgiu Juiz de Fora. A história desse surgimento é, muitas vezes, ocultada. Mas existe um trabalho ativo, crescendo cada vez mais no bairro, de mostrar como foi que tudo aconteceu. O professor Antônio Carlos Lemos Ferreira é um dos que tenta trazer à tona essa história. Apesar de não ser morador do bairro, é professor da Escola Municipal Dante Jaime Brochado. E foi lá onde teve o contato, pela primeira vez, com a história de formação do bairro, junto com suas lendas. Ele já lançou dois livros sobre o assunto: “A devoção a Santo Antônio em Juiz de Fora – O Santo Fujão” e o infantil “A lenda do Morro da Boiada”, mas talvez seja dando aula a forma como ele mais repassa a história: de forma que se vê toda uma geração que sabe o que é o Morro da Boiada.
São quase 25 anos de um estudo interminável. As entrevistas feitas por ele foram várias, porque, apesar dos documentos, é a partir dos relatos dos primeiros moradores que se descobre a origem de tudo. Principalmente de Candinha. “Ih! Quando ele vem aqui eu esqueço da vida. Ele também”, brinca Candinha sobre as visitas de Antônio Carlos. Ele, lá, é conhecido por seu trabalho e o respeito de todos é imenso. Andar com o professor pelo Santo Antônio é entender que cada casa tem uma história, e cada pessoa tem uma vida para se contar. Dentro do carro, já na estrada que forma um “S”, depois do Bairro de Lourdes, ele aponta: “Foi aqui o sítio São Joaquim. Aqui que o bairro começou”.
Primeiro, os negros
Antes de entrar na história, ele diz: “Primeiro, a gente precisa pontuar que, se a gente quiser fazer o país funcionar a gente tem que resolver a questão do negro na sociedade brasileira. A presença do negro aqui é maciça e fundamental. É preciso que você coloque aí que esse bairro começou a ser ocupado por famílias negras”. Os negros desterritorializados se mudaram para a área do arraial porque era um lugar possível de morar. “E vem a família morar aqui que era um matagal. Um frio. Um brejo tremendo. E todas as famílias eram de negros: a família da dona Marlene, do Maninho, do Romeu. São pessoas que ocuparam esse bairro aqui. E só trazendo esses nomes a gente consegue resgatar a negritude brasileira, que é sempre depreciada por uma elite branca. Ou a gente constrói o bolo e todo mundo participa, ou não adianta.” Muitas dessas famílias até hoje estão no bairro, como é o caso da dona Candinha.
Antes do arraial, aquela região era chamada de Morro da Boiada. “Então, este nome tem a ver com uma parada de tropeiros aqui nessa região, que temos muito pouca informação sobre ela. As boiadas vinham das regiões do entorno para ir para o matadouro. Elas passavam por aqui, e desciam aqui, por onde tinha trilho, um caminho, não tinha mais nada naquela região onde a gente sobe para chegar ao bairro. A dona Luíza conta que as boiadas desciam e vinha um guia na frente com a bandeira dizendo: ‘Oh! Sai da rua. Tira as crianças porque a boiada vai passar.’ Vinham bois às vezes muito muito selvagens, né? Então era muito perigoso de fato ficar alguém na beirada da estrada. Tanto é que as casinhas que o Chico Pinicão tinha naquela região todas eram para cima. Você tinha que subir as escadinhas para chegar nelas, exatamente por causa do perigo que havia ali.”
E, então, chega-se a outro ponto central: “A questão da capela é fundamental. Porque, olha só: você tem a fazenda do Juiz de Fora que era ali onde era a boate Sayonara, do lado de cá do Rio Paraibuna. O Caminho Novo passa do lado de cá do rio, à margem esquerda. O Caminho Novo nunca atravessou o rio até a chegada do Halfeld na região. A Fazenda Juiz de Fora é anterior ao Morro da Boiada. Mas a boiada parava aqui. E como tinha aqui capela e cemitério, sendo que lá não tinha nenhum dos dois, esse aqui é o pólo sócio-genético da fundação dessa cidade. E isso a lenda ajudou a guardar, assim como o texto de Lindolfo Gomes. Porque a fundação mineira da cidade é assim: os mineradores vão chegando, fazem fazenda e, junto com isso, capela e cemitério. Onde está a capela e o cemitério desse povoado chamado Juiz de Fora? Ali”, ele aponta.
Já foram encontrados restos de ossos na região. No entanto, eles estavam no Museu Nacional, que pegou fogo em 2018, o que dificulta ainda mais o trabalho de pesquisa. “A gente tem alguns vestígios que ainda podem ser investigados, mas é aí um trabalho de fôlego. Eu vim até aqui. E apontei que o sítio arqueológico mais importante da cidade está aqui. É possível que ainda se encontre ossadas humanas por aqui, por exemplo.” É por causa disso que Antônio Carlos afirma que toda essa história foi ocultada propositalmente. O que fica, de certa forma, é a lenda do Santo Fujão: a que o professor identifica como primordial para mostrar que é ali mesmo a origem da cidade.
Fundação
O fazendeiro Domingos Vidal mandou construir uma capela dedicada a Santo Antônio. Segundo relatos de 1906, lido por Antônio Carlos, a capela era estreita, coberta de telha, com um povoado em volta, com imagens “toscas”. Com a chegada e as mudanças de Halfeld, os fazendeiros vão para a área do Centro. Lá, eles fundam a Igreja Matriz, em 1848, do outro lado do rio, perto de onde hoje é a Catedral Metropolitana. O padroeiro da cidade já era Santo Antônio, com influência dos bandeirantes, e sua imagem estava no Morro da Boiada. Quem morava na região, não queria que sua imagem fosse levada para a nova igreja. Apesar disso, fazem uma procissão e mudam o santo de lugar. O povo, no entanto, o leva de volta para a igreja-primeira. Esse caminho de leva e trás é repetido algumas vezes, até que prendem o Santo Antônio na igreja nova, e lá ele fica. “Juiz de Fora nasce secularizado, por causa disso, mas a referência sempre esteve aqui. O povo fez a igreja aqui para receber seu santo, que nunca mais voltou para cá. Fato é que os ricos roubaram o santo daqui. E talvez seja esse o fator do ocultamento: teve resistência. O resgate dessa lenda é importante porque esse é o texto de fundação da cidade. Isso é precioso”, pontua Antônio Carlos.
Transformação da periferia
A planta do Bairro Santo Antônio é da década de 1950. Para a história, um bairro muito recente mas que, no entanto, tem, de fundo, essa vida mais antiga que a própria cidade de Juiz de Fora. A cidade foi crescendo, o bairro, também: foi subindo o morro, ocupando até o Alto Santo Antônio. A paisagem é um movimento. Quase que uma não-arquitetura, se considerar que houve pouco planejamento. Tata Rocha hoje é arquiteta e urbanista. Mas, quando chegou ao bairro, há 20 anos, era uma criança que tentava entender o que era aquele território. Esse deslumbre e essa curiosidade a guiaram nesse caminho. Tanto que, anos depois, teve a ideia de estudar o bairro: um trabalho que cresceu e deu origem ao Cartografias Afetivas, projeto aprovado pelo Programa Cultural Murilo Mendes que tinha como objetivo primeiro aproximar as crianças da escola do Santo Antônio ao bairro onde moram. Foi um trabalho coletivo de experiência na periferia.
Um dos trabalhos desenvolvidos pelo Cartografias Afetivas Tata tem em mãos. É um mapa em que as crianças no nono ano colaram em um mapa do bairro adesivos que expressavam sua subjetividade: como se fosse “o que eu sinto quando piso aqui”. Um trabalho de território e afeto. Teve também a deriva, em que uma aluna foi convidada a andar pelo bairro, sem rumo, para fazer uma observação ativa. Tudo isso, além de outros trabalhos com as crianças, deram origem a um fotolivro, que fica como registro de um trabalho que busca conscientizar pertencimento, território e o que é estar em uma periferia. “A gente pensou sobre o bairro em várias linguagens. Eu não sei o que ficou para cada um que participou. Mas, para esses alunos, esse assunto surgiu com muita força. A gente pensou no bairro ouvindo história, a gente pensou no bairro olhando o mapa, a gente pensou no bairro através da nossa experiência urbanas. A gente pensou o bairro através de colagens, e a gente pensou no bairro falando sobre ele. São relatos dos próprios alunos e de alguns moradores. Como é para eles? O que eles acham? O que que eles gostam, o que não gostam tanto assim? Então, palavras surgiram ali e dão pistas de que esse assunto chegou para eles de alguma forma.”
Olhar para o bairro é perceber também as características periféricas que permeiam sua construção de identidade. “(O bairro) foi subindo, sai do centro e vai subindo os morros. Mas isso é comum a periferias. Eu entendo periferia hoje não nesse olhar quantitativo-qualitativo, mas em relação ao processo de uma periferia. Entendo a periferia como algo que está à margem e não só fisicamente, mas também socialmente. Todos os processos históricos do bairro para mim tiveram influência direta na forma como ele foi se desenvolvendo. Eu enxergo a arquitetura e a paisagem daqui como fragmentária, autônoma e anônima também. Fragmentado no sentido de que muitos moradores daqui inclusive são trabalhadores da construção civil. Então as casas vão estar sempre em movimento. Várias regiões do bairro também foram resultado de ocupações que vieram de outros lugares para cá. Às vezes jogam as pessoas em um lugar à margem e sem estrutura básica.” Esses lugares são o Cantinho do Céu, a Vila da Prata e o Alto Santo Antônio, principalmente.
Igor Braz vê e sente o bairro
“Ao olhar meu povo que está na luta lá e se desdobra, o que conquistarmos é mérito nosso. O que eles nos deram foi só as sobra.” Igor Braz canta esses versos na praça onde cresceu, brincando com seus amigos. E, para ele, que viu na poesia a forma de declamar o que sente, só faz sentido falar sobre o bairro onde nasceu, cresceu e quer ficar. “A vivência que eu tive aqui, a visão de mundo que me deu, tudo o que eu posso expressar. Acho que a maioria das coisas que eu escrevo nos meus versos também faz parte daqui. Eu falo muito do morro, falo muito da comunidade. Eu falo muito do que eu vejo, do que eu via, do que eu sentia. Eu acho que eu não tinha outro lugar para falar se não fosse daqui.”
Igor desde pequeno sabia da história do Morro da Boiada. Curioso pela formação do lugar onde cresceu, principalmente o Cantinho do Céu, foi pesquisando até chegar na escola, conhecer Antônio Carlos e tantos outros professores que reafirmam o compromisso de falar sobre o Santo Antônio. Foi nesse caminho que descobriu a poesia e o slam: representou Minas Gerais, e, claro, seu bairro, na competição nacional e ficou em segundo lugar. Foi pelos bairros periféricos que teve a oportunidade de falar o que sente, de mostrar o que viu e vive. Porque é assim que faz sentido. “Eu não sei nem explicar a experiência do Slam BR. Nossa, eu não consigo nem descrever. Foram muitos encontros com pessoas do mundo todo. Tinham 23 poetas de cada estado do Brasil. Uma pessoa diferente da outra. Um aprendizado novo, um jeito de recitar, um sentimento diferente. Tudo aquilo ali estava ali, a poesia estava ali.”
Agora que conseguiu sair da sua cidade levando poesia a outras pessoas, a vontade é fazer mais, principalmente para seu bairro: um lugar historicamente de poucas oportunidades. “Ainda é muito difícil. A gente não tem acessibilidade. Não tem gente para te ajudar. O ‘corre’ é solo. Sempre tentando fazer acontecer de uma maneira ou outra. Mas é difícil. Aqui tem várias pessoas que são MC’s e tem talento. Acho que só falta aquele olhar de fora para a comunidade para ver o que tem de bom. Eu vou tentar levar o meu trabalho para o máximo de pessoas possível para tentar pelo menos espelhar alguma coisa. Ainda não tenho o recurso suficiente para fazer tudo o que eu quero. Mas é o que a gente pode fazer. É um pouco da nossa cultura e mostrar para o bairro isso: quem quiser fazer pode vir fazer.”
O poeta faz parte do coletivo Sararau Crioulos, que reúne poetas de várias áreas de Juiz de Fora que se fortalecem e ainda produzem encontros principalmente nas praças da cidade. Eles já fizeram um evento no Santo Antônio, e querem mais. Sempre mais. “Se eu não tivesse vindo daqui, não teria a essência que eu tenho. Eu sou grato a Santo Antônio por tudo. Eu acho que mesmo se eu sair daqui eu vou levar o Cantinho do Céu dentro de mim, entendeu?”, finaliza.
Aos poucos, a cidade vai entendendo sua formação e origem. O primeiro samba-enredo do Vale do Paraibuna, que é do Santo Antônio, em 2002, já trazia essa história como foco: “Meu santo, meu bairro, minha cidade”. Neste ano, que marca o retorno dos desfiles de carnaval em Juiz de Fora, eles reafirmam esse papel, com o samba “O santo é forte! O Morro da Boiada é o berço da cidade”.