No dia 6 de janeiro deste ano, em plena celebração da Folia de Reis, vivi na regiĂŁo da SĂ©, no coração de SĂŁo Paulo, uma das experiĂȘncias sensoriais mais impactantes que meu corpo fĂsico jĂĄ se deu conta. Me submeti a uma sessĂŁo de massagem, que chamei xamĂąnica, guiada por quatro mĂŁos femininas generosas e sĂĄbias capazes de despertar memĂłrias ancestrais em cada centĂmetro do meu corpo.
Ao mesmo tempo, recebia diferentes estĂmulos provocados por aromas, sons e luz ambiente, alĂ©m de tradicionais pedras, toalhas e Ăłleos quentes em pontos atĂ© entĂŁo desmemoriados. Fui tomada por tanta informação que me senti, literalmente, em Wakanda, terra natal do prĂncipe T’Challa (vivido por Chadwick Boseman), no filme Pantera Negra, com meu corpo, inclusive, sendo preparado para importante ritual.
Ao sair da clĂnica, apĂłs longa e reveladora conversa com as terapeutas, ouvi um conselho, nĂŁo me lembro exatamente quais eram as palavras, mas que trazia a seguinte mensagem: âinvestigar as raĂzes fortalece a ĂĄrvoreâ.
A frase foi um estĂmulo extra, para que decidisse mergulhar com mais afinco na memĂłria negra em Juiz de Fora, cidade onde nasci e que, a exemplo de centenas de outras Brasil afora, sucumbiu Ă prĂĄtica bem-sucedida da elite no pĂłs-abolição em silenciar a enorme contribuição dos negros como fonte geradora de riquezas em todos os nĂveis.
Em 1831, de acordo com listas nominativas, o entĂŁo distrito de Santo AntĂŽnio do Paraibuna possuĂa 80% de sua população formada por negros (pretos e mestiços) entre cativos e libertos. Era o maior contingente de africanos e afrodescendentes de todo o estado de Minas Gerais, boa parte oriunda do Rio de Janeiro. A partir de 1856, a emancipada Juiz de Fora se tornou o principal produtor de cafĂ©, tendo a força escrava como a grande energia motriz.
Mesmo com presença e participação tĂŁo expressivas para o desenvolvimento econĂŽmico, cultural e social do municĂpio, fartamente documentadas, a memĂłria local coletiva ainda desconsidera a contribuição dos negros, e segue repetindo atĂ© hoje a narrativa baseada na dominação europeia que a caracterizou como cidade de imigrantes, sobretudo italianos e alemĂŁes.
NĂŁo por menos, termos como a Princesinha de Minas e a Manchester Mineira reinam absolutos no imaginĂĄrio da população que, em sua maioria, sequer ouviu falar do passado escravocrata tĂŁo marcante, tampouco do empobrecimento social que advĂ©m desta nĂŁo memĂłria. Graças ao trabalho de lideranças comunitĂĄrias, pesquisadores e instituiçÔes pĂșblicas ao longo dos Ășltimos anos, associado ao crescimento do movimento negro no Brasil, essa realidade tem se mostrado cada vez mais incĂŽmoda. E iniciativas de trazer Ă tona a memĂłria negra estĂŁo emergindo com força total.
Foto: Fernando Priamo
âPerdoe, mas nĂŁo esqueçaâ
ReferĂȘncia como historiadora quando o assunto Ă© a memĂłria negra em Juiz de Fora, a pesquisadora Elione GuimarĂŁes faz questĂŁo de pontuar o conceito de memĂłria, ao falar sobre o silenciamento e a tentativa de apagamento a que a contribuição dos negros foi submetida. Para isso, recorre Ă s palavras de Peter Burcke, no livro âA HistĂłria como memĂłria socialâ.
âMemĂłria Ă© uma construção social, ela nĂŁo comporta somente a lembrança, mas tambĂ©m o esquecimento, o que se convenciona chamar de amnĂ©sia social, esquecimento de fatos incĂŽmodos. Ao construir sua memĂłria, o grupo escolhe os fatos que considera relevante serem lembrados, faz escolhas, esquece e faz esquecer outros acontecimentos sociais. Por detrĂĄs destas escolhas, hĂĄ interesses, que nos levam a questionar âquem quer que esqueça o quĂȘ e por quĂȘ?â
Sem desmerecer a contribuição vital de outros povos para a construção da identidade local, Elione atenta para as consequĂȘncias nefastas quando se tenta apagar memĂłrias sejam elas quais forem.
âCreio que o impacto coletivo deste silenciamento Ă© a tentativa do apagamento histĂłrico; Ă© o desrespeito; Ă© o racismo. Nega-se a importĂąncia histĂłrica destes indivĂduos ou deste grupo de indivĂduos; nega-se sua contribuição prĂĄtica para a geração da riqueza e da construção da cidade como ela foi e como ela Ă©, e tambĂ©m a herança cultural que nos deixaram. Ă tambĂ©m o silenciamento sobre a histĂłria do trabalho e do trabalhador. Ao silenciar parte de nossa histĂłria e de nossas memĂłrias, a perda nĂŁo Ă© sĂł para os negros, Ă© uma perda coletivaâ, diz a pesquisadora.
E vai mais longe.
âCerta vez, fui questionada em uma entrevista. Se Ă© verdade ‘como digo’ que Juiz de Fora tinha assim tantos escravizados e negros livres, isto significa dizer que a população negra se misturou muito com a de imigrantes, pois hoje a cidade Ă©, praticamente, toda branca. E respondi: por onde anda vocĂȘ, homem âbrancoâ? O que quer ver nesta cidade que Ă©, quer vocĂȘ queira ou nĂŁo, uma cidade negra? O Censo de 2010, por exemplo, apontou que cerca de 46% da população se autodeclara preta ou pardaâ.
Por isso, segundo Elione, ârecuperar as vivĂȘncias dos negros e seus saberes Ă© fundamental para o resgate de subjetividades, para o reconhecimento de sua contribuição e importĂąncia para a histĂłria coletiva e para o legado cultural da cidade, do estado e do paĂs. Ă romper o silĂȘncio e o apagamento social que se estruturaram ao longo dos sĂ©culos. Ă devolver-lhes a sua HistĂłria e o seu lugar na HistĂłriaâ.
Como, porĂ©m, as grandes transformaçÔes sociais sĂŁo frutos da coletividade, essa Ă© uma tarefa que precisa romper a barreira das raças, sob pena da amnĂ©sia (e seus prejuĂzos) seguir maltratando a todos e, particularmente, mais ainda os negros. Afinal, como dizia o filĂłsofo Edmund Burke, âum povo que nĂŁo conhece sua HistĂłria estĂĄ fadado a repeti-laâ.
COMPARTILHANDO
Conheça uma das iniciativas para o resgate da memória negra.
Centro Virtual da MemĂłria Negra de Juiz de Fora, organizado pelo LABHOI-UFJF