Passagem de Augustin de Saint-Hilaire por Ibitipoca completa 200 anos
Botânico francês viveu no Brasil entre 1816 e 1822, tendo coletado mais de 30 mil amostras de plantas, animais e vegetais, incluindo a região do distrito de Lima Duarte
“Este, sem dúvida, é o lugar mais belo do mundo”. Foi dessa forma, há quase 200 anos, que o francês Augustin François César Prouvençal de Saint-Hilaire descreveu a região da então Vila de Ibitipoca. Na próxima segunda-feira (14), completam-se dois séculos da chegada do botânico a Conceição de Ibitipoca, como é conhecido atualmente o distrito de Lima Duarte e que abriga o Parque Estadual de Ibitipoca. A jornada foi a última viagem de Saint-Hilaire pela então colônia de Portugal antes de retornar à sua terra natal.
Augustin de Saint-Hilaire nasceu em 4 de outubro de 1779 na cidade de Orleans, tendo estudado botânica e se dedicado ao ramo da morfologia vegetal. Em 1816, chegou ao Brasil como integrante de uma missão diplomática de seu país que ficaria por aqui por alguns meses, mas decidiu permanecer a fim de estudar a exuberante flora brasileira. Estabelecido no Rio de Janeiro, ele passou os seis anos seguintes coletando mais de 30 mil amostras de plantas, animais e minerais. Em suas andanças, o francês chegou aos atuais estados de Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Goiás, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, além de chegar até o território que se tornaria o Uruguai. Ao retornar para a França, Saint-Hilaire passou as três décadas seguintes dedicando-se ao estudo do material coletado, que rendeu mais de três mil páginas nos vários livros que publicou antes de sua morte, em 1853, em que também apresentou sua visão sobre diversos aspectos geográficos, históricos e antropológicos da futura nação.
Longa jornada
A expedição de Augustine de Saint-Hilaire partiu em 29 de janeiro de 1822 do Rio de Janeiro, na região onde fica atualmente o bairro de Inhaúma, em direção ao Caminho do Comércio. Ele seguiu por Nova Iguaçu e Vassouras e entrou em Minas Gerais por Rio Preto. Em 14 de fevereiro, chegou à Vila de Ibitipoca, onde ficou durante alguns dias hospedado em fazendas da região. Em suas andanças para coletar amostras, ele passou por alguns dos pontos mais conhecidos de Ibitipoca, como o Paredão de Santo Antônio e o Pico do Pião. Depois, seguiu para a região de Barbacena.
Resgate histórico
Se Conceição do Ibitipoca tem, hoje, uma população reduzida, no início do século XIX havia ainda muito menos pessoas, que o próprio Saint-Hilaire comentou a respeito dos casebres humildes e em quantidade reduzida. Por isso, as memórias de sua passagem pela localidade são esparsas, mas quem conhece a história tem procurado aproveitar a efeméride para dar mais luz a esse momento importante na história da região.
O guia e condutor ambiental Gabriel Fortes acredita que a lembrança dos 200 anos da passagem do botânico francês ajudará a dar mais visibilidade à importância histórica de Saint-Hilaire para Ibitipoca.
“A vinda de Saint-Hilaire a Ibitipoca sempre foi abordada pelos guias e condutores que se interessam pela história, mas acredito que nem toda a comunidade conheça. Esse resgate ajuda a trazer uma sensação de pertencimento, pois foi um nome muito importante na comunidade científica, que coletou espécies em nossa região. Isso mexe com o orgulho da comunidade; eu, pelo menos, fico muito orgulhoso, afinal ele ficou na antiga Fazenda do Tanque, que pertencia a meus familiares e foi repartida depois.”
Por causa da baixíssima densidade demográfica da época – e apesar de seus antepassados já viverem na localidade -, que dificulta a transmissão escrita e oral da passagem de Saint-Hilaire, Gabriel só foi conhecer a história com mais profundidade graças a suas pesquisas para o trabalho como condutor ambiental. De acordo com ele, os marcos que ajudam a manter a memória viva vêm da própria natureza, além de um poema escrito pelo próprio francês e que foi reproduzido na entrada do Centro de Visitantes do parque.
“Ibitipoca é uma área de transição biológica, entre a Zona da Mata e o Campo das Vertentes, e costumo dizer que é um visual muito parecido com o que Saint-Hilaire percorreu. Depois de passar pela Mata Atlântica, ele se deparou com essa mudança na vegetação entre as duas regiões. No novo parque (Serra Negra da Mantiqueira) ainda existem algumas das trilhas por onde ele passou, como a do Burro de Ouro e a da Cruz do Negro, que ficam na divisa entre Rio Preto e Olaria”, diz.
Gabriel Fortes também falou sobre algumas das histórias relacionadas ao estudioso que conseguiram sobreviver ao tempo. “A mais conhecida é a de quando chegou no casebre de uma família que morava no futuro Parque Estadual de Ibitipoca, pois havia um senhor que disse ter matado dez onças, e isso o impressionou muito. Outra muito conhecida é de quando encontrou em algumas grutas os vestígios de possíveis escravos fugidos das fazendas, inclusive uma delas foi nomeada de Gruta dos Fugitivos.”
Fã declarado do botânico, Gabriel destaca que Saint-Hilaire já demonstrava, dois séculos atrás, sua preocupação com o futuro do distrito. “Ele era não somente botânico, mas também poeta e amante das montanhas. Em seu poema que está reproduzido no Centro de Visitantes, ele mostra sua preocupação com a possibilidade da má ocupação daqueles campos no futuro, que é o que temos hoje: crescimento desordenado das vilas, a monocultura do eucalipto. Infelizmente, ele estava certo.”
Apaixonado pela história
O produtor rural Waltemberg Sales de Carvalho é proprietário de uma das propriedades resultantes do desmembramento da Fazenda do Tanque, que foi um dos locais que abrigou Saint-Hilaire e pertencia à sua família desde que chegou à região, no século XVII. Ele se considera um historiador autodidata e com um interesse profundo pela história da personalidade francesa – a ponto de comprar todas as cópias de “A segunda viagem do Rio a São Paulo, passando por Minas Gerais”, escrito pelo francês, que encontrou em uma banca de jornais em Belo Horizonte em 1979.
“Ele se hospedou na fazenda porque, na época, ela era um ponto de apoio entre Vila Rica (atual Ouro Preto), São Paulo e Paraty, e abrigava alguns conselheiros e até mesmo alguns inconfidentes. O Saint-Hilaire se encantou com a beleza dos campos, e quando visitou a Serra Grande (antigo nome da Serra do Ibitipoca) escreveu: ‘À vista dos belos campos se apresenta hoje aos meus olhos, não pude deixar de sentir verdadeiro aperto no coração. Pena que voltarei à Europa e nunca mais passarei num lugar mais belo que este. Este, sem dúvida, é o lugar mais belo do mundo’”.
Waltemberg diz que chegou a haver alguma transmissão oral da passagem de Saint-Hilaire, mas que foi se perdendo com o tempo devido à morte dos mais velhos e a falta de interesse dos jovens. No seu caso, ficou sabendo da passagem por sua avó, que por sua vez conheceu a história pela bisavó do produtor rural.
“Eu tinha um amigo professor de História interessado pela história de Lima Duarte, além de uma jornalista, que iam lá para ouvir minha avó contar sobre o botânico francês que ficou hospedado alguns dias na fazenda”, conta. “A passagem de Saint-Hilaire por Ibitipoca é lembrada por uma minoria. Costumo dizer que o turismo pegou a localidade desprevenida, por isso mesmo essa história precisa ser resgatada.”