Jorge Mautner e Cecilia Beraba lançam single ‘Não, não, não’
A intérprete carioca faz releitura da música de protesto presente no compacto “Radioatividade”, lançado pelo cantor, compositor e escritor em 1966
Cecilia Beraba, 31 anos, pediu desculpas a Jorge Mautner ao lhe apresentar a base da releitura de “Não, não, não”. A canção fora lançada por Mautner no compacto “Radioatividade” em 1966, o primeiro trabalho musical do até então escritor. Ele foi acompanhado pelo grupo de folk-rock The Vikings ao gravar “Não, não, não” e “Radioatividade”. A versão produzida por Cecilia, por outro lado, como a própria admite, é um rock ‘n’ roll pesado. “Disse ao Jorge: ‘Não sei se você vai gostar. Se não gostar, vamos ver o que eu faço’. Mas ele falou: ‘Não, é isso! É isso mesmo! Os tempos pedem isso.’ E concordo com ele.” A música foi relançada em 27 de agosto por Cecilia em parceria com Mautner.
“Não, não, não” é uma espécie de rock protesto chiclete, como define, aos risos, Cecilia. Quando produzia a releitura, a mãe de Cecilia a escutou uma única vez. “Mas passou semanas cantando ‘não, não, não quero ouvir mais você falar’ toda vez que eu chegava perto. E, depois que lancei a música, as pessoas realmente falavam ‘caraca, essa música gruda. A gente quer se livrar, mas ela não sai da cabeça’”, relembra. O caráter de protesto é mais óbvio, pontua a intérprete. Mas a música também é chiclete. A mixagem e a masterização de “Não, não, não” são de Leo Moreiras, as guitarras, de Glauber Seixas, a bateria é de Thomas Harres, pianos e sanfona são de Antônio Guerra, e o baixo é de Gabriel Loddo.
Ainda que a canção tenha estreado dois anos após a instalação da Ditadura Militar, a década de 1960 dava à luz o movimento hippie. “Havia uma coisa mais paz e amor”, pontua Cecilia. A versão de 1966 é uma espécie de rock americano cinquentista. “Bem beatnik. Jorge é um escritor beatnik tropical no começo da carreira – o livro ‘Deus da chuva e da morte’ (1962) é um exemplo.” O contexto sócio-histórico atual exigiu da produção musical uma febre. “A gente não está em um momento paz e amor. A gente está em um momento de contenção de terror. Me deu vontade de que a música viesse sucinta, rápida e febril. É quase um desabafo. A gente passa o dia inteiro ouvindo asneiras de políticos, empresários etc., e é aquele momento em que dizemos ‘não aguento mais’.”
Conforme Cecilia, “Não, não, não” é uma grande exposição dos “dons proféticos” de Jorge Mautner. “Parece que foi feita hoje”, afirma. As formas de opressão da época e as contemporâneas são parecidas, acrescenta, embora os personagens sejam diferentes. “A grande semelhança que a gente encontra nas duas fases é exatamente o conservadorismo. É um conservadorismo que oprime as mulheres e que deixa muito clara a miséria social, a diferença entre os seres humanos, a imensa pobreza. Pouquíssima gente tendo rios de dinheiro e a maioria esmagadora passando por situações de escassez”, explica.
Daqui até o fim da vida
O single dá continuidade à parceria entre Cecilia e Mautner. Em março, a intérprete lançou o álbum “Eterno meio-dia”, o primeiro da carreira, em celebração aos 80 anos do compositor. Das 12 músicas, 11 são compostas por ambos – apenas “Eremita erê” não. “O nosso repertório conjunto tem mais de 30 músicas. Nunca contei exatamente, mas há tanto tempo a gente fala que tem mais de 30 músicas que já tem que contar de novo”, brinca. A relação entre Cecilia e Mautner começou há mais ou menos cinco, seis anos. “O Jorge é o meu maior ídolo. Sabe ídolo, como as pessoas amam a Madonna? O meu é o Jorge.” Antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente, Cecilia já havia lido tudo o que tinha escrito e escutado tudo o que tinha composto.
De acordo com a compositora, Mautner criou uma filosofia própria “muito bem embasada e construída”. “Jorge realmente conseguiu uma coisa que é espantosa para um intelectual, um artista e um pensador que é desenvolver uma fenomenologia: a fenomenologia do kaos”, explica. Cecilia refere-se à trilogia de livros formada por “Kaos” (1964) e “Narciso em tarde cinza” (1966), além do próprio “Deus da chuva e da morte”. “Aquilo me impressionava muito porque nunca quis ser apenas cantora ou intérprete. Queria poder pensar sobre os mais diversos assuntos. Então, quando comecei a entender o que o Jorge era como artista, aquilo foi imenso pra mim. ‘É isso que quero fazer’, pensei.”
Cecilia chegou mais cedo a um dos shows de Mautner para lhe conhecer. Embora ali “tenham se entrelaçado de forma muito bonita”, ambos ficaram próximos após a intérprete convidá-lo para fazer uma canção. “O que acabou nunca acontecendo. Mas, depois daquilo, a gente ficou superamigo e, na primeira vez em que nos sentamos para conversar de verdade, ele me disse: ‘As estrelas te mandaram. Daqui até o fim da minha vida, a gente se encontra pelo menos uma vez por semana para eu ir te passando as coisas que são importantes. Depois, quando eu morrer, eu volto para te assombrar'”, detalha. Desde então, Cecilia e Mautner encontram-se ao menos uma vez por semana e conversam por telefone todos os dias.
Novo álbum
As homenagens da compositora a Mautner serão encerradas apenas em janeiro de 2022, quando Cecilia lançará o disco “Cecilia Beraba canta Jorge Mautner – Só o amor pode matar o medo”. O álbum, adianta a intérprete, será um passeio pela obra do ídolo. Em comparação àquele lançado em março, o de 2022 será mais homogêneo, conforme Cecilia. “No deste ano, eu estava batendo cabeça sobre como fazer um disco. É muito complicado fazer tudo sozinha. Montar um disco inteiro: compor, cantar, pagar etc. Bati muita cabeça com coisas que, agora, não precisei mais bater.” A intérprete pôde, por exemplo, cuidar mais da produção musical. “É um disco que está com uma parte instrumental muito linda, com naipes de metais maravilhosos, e com canções muito fortes do ponto de vista sentimental e afetivo. E, também, muito bom para fazer show.”