A cidade e os fantasmas
Um dia de sol desses e eu numa melancolia dos diabos, como se já fosse domingo. Acontece vez ou outra. Passo quase todo o tempo em estado presente. Mas é só bater o olho numa fotografia de terra alaranjada para imaginar o rio barrento e sentir o olho arder de sol e da poeira que também tem gosto. Abre-se uma porteira e de lá uma selvageria em pensamentos escapole e pouco adianta tentar agarrar esses touros bravos de volta. Os olhos pulam para a fotografia da pracinha da esquina e não é possível que eu tenha largado tudo isso num lugar meu onde não existo a não ser como um fantasma antigo, teimoso que não arreda o pé do que guardou dentro do olhar, uma alma penada. Parece até que posso voltar quando quiser. Todo mundo vai desaparecendo, os vivos e os mortos. Os vivos escapam dos próprios sonhos, envoltos em dias que correm e quando se vê, as mãos estão soltas. Os mortos misteriosamente somem de vista. Já não se vê aqueles corpos quietos feito plástico dentro das salas de visita. Já não sinto mais a palma da mão da mãe cobrindo meus olhos com os dedos espalhados ao passar rente ao velório da rua com suas janelas abertas de onde se espreita choro e problema. Agora temos uma capela mortuária que já nos avisa que somos iguais. Todos os finados para a capela, nada de sala de visita de casa grande ou de senzala. Morreu, vai para debaixo daquela mesma terra barrenta e o espetáculo que desossa e expõe os entes queridos já começa na capela comunitária. O alto-falante da igreja em marcha fúnebre deu lugar ao carro de som, o mesmo que avisa do baile mais tarde.
Melancolia é a cidade que não existe mais. Se eu cair na real, vou me encontrar sem ter para onde ir. Posso até ter onde cair morta, mas onde estarão os vivos para testemunhar essa tragédia? A memória começa a falhar e as mentiras aumentam para virar um texto. Guarani garantida e guardada numa folha de A4 exatamente como eu quero contar. Vai ver por isso meus filhos sentem falta dos meus pés descalços, se espantam com a marca da picada da abelha no meu mindinho e riem da cicatriz no meu queixo, a única que eles conseguem ver.