Dois + celebra os 40 anos da Tribuna revisitando reportagem da 1ª edição
Tribuna compara a atual Avenida Rio Branco com aquela de setembro de 1981
“Meu amigo. Dura a soneca, efetivamente, uma hora. Ergo-me alegre como um passarinho e saio do hotel às duas horas da tarde. Vou barbear-me”, escrevia a um amigo, em março de 1889, o teatrólogo e cronista Artur Azevedo. “O barbeiro pergunta-me se faço parte da Companhia de Guilherme da Silveira, atualmente em Juiz de Fora. Respondo que sou tenor. Cobra-me 400 pelo seu trabalho e acho justo, pois afirma que em Juiz de Fora todos usam barba inteira, ou quando não, fazem a própria barba.” Azevedo descrevia a então Rua Direita, que, em 1912, passaria a ser conhecida como Avenida Barão do Rio Branco.
“Diga-se de passagem que a loja é asseada, o barbeiro é perito e a perfumaria excelente e mesmo a navalha não machuca”, seguia Azevedo. “Ao sair, encontro um velho conhecido, que transferiu sua alfaiataria da Rua do Ouvidor para a Rua Halfeld. Eis-me no Largo Municipal, coração da cidade. Ali está o Fórum, o primeiro edifício do seu gênero estabelecido no Brasil. É um magnífico palacete. Ali se acham reunidas todas as repartições públicas, ali funcionam o júri, a Câmara, as coletorias e os cartórios.”
“A Rua Direita, que principia neste largo e só termina no Alto dos Passos, é a mais importante da cidade. E tão larga como os ‘boulevards’ de Paris, e mais extensa que qualquer deles. Tem importantes edificações, está bem arborizada de ambos os lados e perfeitamente nivelada, protestando assim contra o costume, que há no Brasil, de se chamar Direita a rua mais torta. Falta-lhe calçamento. Deem-lhe e ela será uma formosa avenida”, concluiu o também jornalista.
O depoimento acima foi resgatado da matéria “A nova avenida já não guarda as boas lembranças da Rua Direita de outrora”. A reportagem, assinada por Guilherme Rocha, estampou a primeira edição do jornal a circular, há exatamente 40 anos. Em comemoração à data, a Tribuna compara a atual Rio Branco com aquele à época em que o primeiro impresso foi para as bancas.
Descrição de Azevedo à parte, quem melhor definiu a Avenida Rio Branco foi o historiador Paulino de Oliveira, afirma o jornalista Wilson Cid: a Rio Branco é a própria história da cidade. “Foi a primeira via pública que se abriu e por onde a cidade escoou não apenas as suas riquezas, mas toda a sua população, o seu desenvolvimento e o seu progresso.” Desde o primeiro traçado, ainda em 1836, enquanto Estrada do Paraibuna, a Rio Branco é fundamental para o desenvolvimento urbano de Juiz de Fora. “Até hoje, quando observamos as grandes construções e os grandes edifícios, a Avenida Rio Branco continua sendo a espinha dorsal de Juiz de Fora.”
O traçado já não é exatamente o mesmo delimitado originalmente por Henrique Halfeld quando desviou Juiz de Fora do Caminho Novo à margem direita do Paraibuna. “Tudo na cidade até então se desenvolvia na margem esquerda do Rio Paraibuna”, pontua Cid. Mas a Rio Branco se estendeu em direção aos bairros da Região Nordeste, como Bandeirantes, Filgueiras e Grama, e da Região Sul, como Alto dos Passos, Bom Pastor e Cruzeiro do Sul. Intervenções durante a segunda metade do século XX consolidaram a antiga Rua Direita como principal eixo viário de Juiz de Fora. Ainda entre os anos 1960 e 1970, Itamar Franco retomou e Agostinho Pestana concluiu as obras da Garganta do Dilermando, por exemplo.
Entretanto, as obras mais significativas vieram na esteira da criação do Instituto de Pesquisa e Planejamento (Ipplan) em 1978. Foi sob a administração de Mello Reis que os ônibus ganharam corredores centrais exclusivos – os bondes elétricos e de tração animal, puxados por cavalos e jumentos, eram apenas história àquela altura. Foi também quando os carros ganharam um desvio da linha férrea na altura do Sport Club com o Mergulhão. A Rio Branco era uma nova avenida desfigurada pelo progresso. “As grandes vias urbanas vão desembocar justamente na Rio Branco. Então, ela continua sendo a área mais importante para o escoamento do tráfego de Juiz de Fora. Começou assim em seus primórdios”, relembra Cid.
Só que, de tanto escoar o tráfego, a Rio Branco talvez tenha se tornado uma via meramente de passagem, não de estadia. A avenida está se transformando em um não-lugar, aponta Christina Musse. “O ‘não-lugar’ é um termo cunhado pelo sociólogo Marc Augé. É aquele espaço pelo qual as pessoas apenas passam rapidamente ou ficam presas no tráfego. Não têm prazer, não olham, não veem beleza. Não há mais espaço para contemplação”, afirma a professora da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). As pessoas andam pela Rio Branco apenas apressadas. “Porque estão atrasadas para ir ao médico, vão comprar pão ou vão trocar um sapato que ficou apertado.”
Ninguém vai fazer “flâneur” na Rio Branco, acrescenta Christina. “Não há um lugar para tomar um chope sentado e ficar como um bom ‘flâneur’ olhando a beleza de Juiz de Fora.” Ainda nos anos 1970, os jovens perambulavam pela Rio Branco durante a madrugada sem qualquer perigo ou problema. “Os jovens voltavam de madrugada a pé de festas com a maior tranquilidade, seguros. Quem faz isso hoje? A cidade vai tomando uma agressividade em que se torna apenas um lugar de passagem.” Nos últimos anos, a Rio Branco perdeu ambiências e espaços de sociabilidade, como o Bar Redentor, ali, na esquina com a Rua Espírito Santo, onde funciona uma operadora de saúde. O botequim foi fechado em maio de 1987, já que o prédio que o abrigava seria demolido. “Já nos 1980 havia o sentimento de perda de lugares emblemáticos de encontro.”
Conforme Christina, a partir dos anos 1980 a especulação imobiliária acentuou um processo de verticalização da Avenida Rio Branco, que lhe transformou “em uma avenida extremamente desumana”. “A arquitetura está a serviço das pessoas para promover o diálogo e o encontro. E não vejo isso na Rio Branco.” A via é “aborrecida”, completa o professor do Departamento de História da UFJF Marcos Olender. A verticalização do centro urbano, sobretudo a partir da década de 1970 diante da flexibilização da legislação municipal, levou alguns imóveis com valores arquitetônico e histórico notáveis às margens da Rio Branco ao chão, como o antigo Colégio Stella Matutina e sua capela, o Palácio do Bispo e a casa na esquina com a Rua Rei Alberto – esta, um estacionamento hoje.
Estacionamentos, que, inclusive, constituem uma fase de transição do processo de verticalização, explica Olender. “Muitas vezes há a demolição da antiga edificação, que passa pelo estágio de estacionamento para retorno rápido de investimento, e, posteriormente, vira uma grande edificação.” Até o trecho entre a Itamar Franco e Bom Pastor se verticalizou nos últimos anos, afirma o professor. “Era uma área que não era tão verticalizada. Havia vários sobrados e casarões, mas que foram se perdendo, demolidos. O resultado é a perda de qualidade de vida.” O filósofo alemão Walter Benjamin, lembra Olender, dizia que a cidade não se contempla, apenas se usa. “A contemplação se dá quando algo nos surpreende. Isso não acontece na Rio Branco. Pelo menos, não no trecho central, entre a Andradas e a Itamar Franco.”
Tópicos: tribuna 40 anos