‘Gente que fez a Tribuna’: Rodrigo Barbosa, um menino em tempos sombrios
1961, 1981, 2021: Histórias de meninos, jornais e oficiais
Rodrigo Barbosa, estagiário da Tribuna entre 1981 e 1982
Ali, diante do oficial, estava um menino de 19 anos. Ele bem se lembra da cena (ou acha que se lembra, que a memória é uma coisa traiçoeira): a sala de um palacete imponente ao lado dos jardins do Museu Mariano Procópio, o pé direito bem alto, a janela larga, a parede com pinturas figurativas e quadros com fotos, insígnias e outras referências militares. O sol forte daquela tarde de 1981 entrava pelas costas do homem fardado e a luz rebatia no tampo de vidro da sua mesa, chegando forte aos olhos do menino, que ocupava a cadeira de madeira diante da autoridade, conforme lhe havia sido indicado pelo ajudante de ordens. A poltrona do oficial era bem alta, a mesa entre eles era muito grande, o brilho em reflexo quase impedia que o menino distinguisse as feições do seu interrogador sob o quepe verde.
E ele era um menino de 19 anos, diante de uma face à sombra do temido governo militar.
Provocado pelos colegas da Tribuna de Minas a um depoimento sobre esses incríveis 40 anos do jornal – e sobre minha relação com ele -, a primeira imagem que surgiu diante de mim foi essa. O palacete era o Quartel General da 4ª Região Militar do Exército brasileiro; o encontro entre o oficial e o menino, um interrogatório como parte de um inquérito aberto com base na Lei de Segurança Nacional; o motivo, uma reportagem publicada na primeira página do Caderno Dois do recém-lançado jornal e que, supostamente, “difamava” as forças armadas; o oficial, o encarregado militar de interrogar os responsáveis pelo texto e pela edição da matéria.
Ah! E o menino era eu, estudante do 4° período de Jornalismo na UFJF, estagiário no novo jornal “nas ideias e objetivos” e orgulhoso autor da tal reportagem.
Foi curtíssima minha passagem pela Tribuna de Minas. Poucos meses entre o número inaugural, em setembro de 1981, e o início do ano seguinte. Logo depois, eu me formaria e iria atrás de sonhos naquele grande balneário perto daqui, em outras agitadas e excitantes redações. Mas, por duas razões, a Tribuna sempre continuaria comigo: por um lado, pelas lições que recolhi daquela experiência, pelo convívio com editores, repórteres e fotógrafos que me deram o privilégio de vivenciar a aventura da criação do jornal, pelas pautas instigantes como a que me levou ao interrogatório no QG; por outro, pela edição diária que chegava e chega à porta da minha casa, pelo convívio com os jornalistas amigos e suas histórias (e, depois, com os alunos que viraram jornalistas amigos e suas histórias), pelos diálogos que construí depois com a redação como sua fonte de informação. A Tribuna sempre continuaria comigo porque o Jornalismo e Juiz de Fora sempre seriam meus companheiros de vida.
Bem, agora que eu e a Tribuna já confessamos nossa relação (e entregamos nossa idade), é necessário justificar o adjetivo que usei no terceiro parágrafo para me referir aos 40 anos desse jornal. Sim, é incrível a sustentação por quatro décadas de um jornal bem produzido, bem editado, relevante, vivo, inquieto, aglutinador de gente criativa e talentosa, em uma cidade brasileira do porte de Juiz de Fora. Sim, é incrível constatar, como juiz-forano, que temos aqui um dos melhores jornais brasileiros, com uma qualidade que não se encontra em muitas capitais do Brasil (pode acreditar, meu caro conterrâneo, minha cara conterrânea, que bem gostam de uma certa autodepreciação quando o assunto é nossa cidade, a Tribuna é um grande jornal brasileiro).
A celebração de força de um jornal me conduz de volta à cena inicial para contar que aquele inquérito militar não foi para frente, felizmente. Talvez tenha sido apenas um “recado do poder”, uma dita “dura”, para dar um susto no menino, na menina Katia Dias (sua editora, também intimada a depor) e no jornal-menino recém-nascido. Minha história do QG acabou ali, mas, além da lembrança de que éramos jovens e audaciosos, deixou viva a memória da deliciosa entrevista, concedida ao estagiário pelo jornalista Euro Arantes, entre cervejas e tira-gostos, num botequim que não existe mais, na Rua São João, quase esquina com Getúlio.
Uma entrevista em que o criador do jornal mineiro “Binômio” contou a história do dia, no ano de 1961, em que o general Punaro Bley, irritado com uma reportagem, invadiu o jornal para bater nos jovens editores. Depois de trocar sopapos com o jornalista José Maria Rabelo, o chefe militar, em desvantagem na briga, deixou a redação, para, em seguida, mandar seus soldados com a “missão” de invadir a sede do jornal, quebrar máquinas de escrever e arquivos, com tiros de metralhadora para o alto e aos gritos de “a revolução está começando”. Não é que, vinte anos depois, recontar esse acontecimento na página do Caderno Dois irritou outros quartéis em Juiz de Fora?
São histórias de meninos, de jornais, de oficiais. Que merecem ser contadas porque o bom mesmo é saber que, assim como em 1961 e em 1981, a Tribuna e o Jornalismo estão vivos em 2021. Para cobrar, para fiscalizar, para denunciar (e irritar) generais – e outras patentes. Para resistir à intimidação, à violência, aos golpes contra a liberdade de expressão.
Tópicos: tribuna 40 anos