No limiar entre o estar e o não estar mais
“Por melhor indivíduo que você seja, por mais humano que você se considere, por mais que você se sensibilize com a dor do outro, nada se compara quando você está no lugar do outro”
Por seis longos dias, estive internado entre a vida e a morte, sob uso de oxigênio, devido à Covid-19. O que desejo é falar sobre o outro lado dessa experiência, a de vivenciar o que é amor de verdade. Ali, naquele estado agonizante, meus olhos apenas contemplavam um panorama ao meu redor que os fazia marejar e, muitas vezes, umedecer a fronha do travesseiro.
Vendo a atuação dos profissionais da saúde, sendo protagonistas de uma história que vai marcar a humanidade para sempre, pude compartilhar com pessoas que jamais havia visto na vida, os outros enfermos, o que é realmente o sentimento de empatia, de alteridade. São incansáveis. Melhor, são resilientes, determinados, são anjos.
O que vi, enfim, foi algo que até então, demagogicamente, conhecia como amor. Crendo ser um cara legal, ouvia dizer que se colocar no lugar do outro é um sentimento nobre, mas a verdade é que tal sentimento só se pode sentir mesmo quando nos despimos completamente dos nossos confortos, das nossas comodidades, do nosso bem-estar. Só aí, quando nos igualamos com o próximo, nós conseguimos experimentar esse sentimento ágape.
Por melhor indivíduo que você seja, por mais humano que você se considere, por mais que você se sensibilize com a dor do outro, nada se compara quando você está no lugar do outro. E ali, naquela enfermaria, eu era a agonia do outro, eu era a dor do outro, eu era a preocupação do outro, eu era o outro. Uma simbiose, sofrida e maravilhosa.
Hoje, ainda em fase de recuperação, agradeço a Deus por ter me poupado. A pergunta é “Para quê?”, e não “Por quê?” O fato é que muitas das que se foram eram pessoas, com certeza, melhores que eu, de melhor caráter, de melhor coração, e tinham um papel mais importante para o mundo do que a minha própria vida. Muitos eram médicos e enfermeiros, combatentes, que caíram no campo de batalha e que poderiam estar aí, salvando vidas. Entretanto partiram. Deixaram familiares, filhos, esposas, maridos e pais. Partiram para o eterno.
Talvez tenhamos nos perguntado sobre isso, talvez tenhamos perguntado a Deus o porquê. Mais uma vez, a pergunta deveria ser “Para quê?”. Afinal, a humanidade talvez tenha que passar por isso para, exatamente, humanizar. Em um mundo em que permeia o capitalismo selvagem, o individualismo, o selvagerismo, o egoísmo, toda a espécie de doenças sociais que designa a terminologia “ismo”, talvez o ser humano tenha mesmo que parar e refletir, e melhorar, e tornar-se humano humano, e não humano desumano.
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