Nair Guedes: submissão, feminismo, capacidade de ação e subversão de papéis
‘Sinto que as mulheres têm que montar estratégias para sobrevivência’, afirma última entrevistada da série Na Pele Delas
A última entrevistada da série “Na Pele Delas” é Nair Barbosa Guedes. Antes de falar se sua própria experiência como mulher, ela faz uma atualização do pensamento da escritora Simone de Beauvoir, feita pela filósofa Manon Garcia, no livro “Não se nasce submissa, torna-se submissa”. “Ela considera que ser submissa exige um combate constante e exaustivo.” Um tema que Nair alerta ainda ser tabu dentro do feminismo. Ela resume o pensamento de Manon, dizendo que a sociedade define um papel para a mulher. E as que ousam fugir dele, acabam punidas.
“As meninas e os meninos vão aprendendo comportamentos e, essa divisão sexual é tão grande, que, inevitavelmente, vai ter conflito mais tarde. É claro que hoje as coisas estão mudando muito. Hoje, as meninas já se rebelam. Elas não aceitam mais que as coisas sejam assim e mudam o posicionamento diante dos pais, do namorado”, explica Nair. A submissão seria, nesse sentido, ver as coisas a partir do ponto de vista da mulher.
“Elas resistem à dominação. Fica aquela briga, que é tão grande, que em um momento ela se cansa e se acomoda, porque se continuar, vai ter que se divorciar, sair do emprego e nem sempre isso é possível, ou viável. É a essa adaptação de comportamento que Manon chama de submissão. E não é estupidez. A submissão não é desistir da liberdade, mas uma renúncia ao combate, porque combater consome uma energia enorme e nem sempre as mulheres têm condições sociais e materiais para realizar.”
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Partindo desse conceito, ela reforça que o movimento feminista é imprescindível, embora seja preciso considerar que nem sempre é possível chutar a barraca, porque sair dessa situação implicaria em ter o mínimo de capacidade de ação, o que não é a realidade de muitas mulheres, ainda. “As mulheres vão entender do que estou falando. A nossa vida exige muita luta, muita lucidez, e vendo isso, me lembro que sou feminista, militante política e revolucionária.”
Subverter papéis
Nair Guedes conta ter se percebido mulher ainda no seio de sua família. “Minha mãe teve 12 filhos, viveram dez. Por muitos anos, fui a única mulher, depois vieram mais duas. Então, desde cedo, via a diferença que minha mãe fazia entre os meninos e eu. Ou seja, eles saíam para ir à rua, brincavam. Ela sempre me falava, me ajuda aqui a arrumar a cozinha e a dar banho nos seus irmãos. Aí eu ficava intrigada.”
Ela, no entanto, desde o primeiro momento, não aceitou os papéis que eram dados a ela.”Eu não me conformei com isso. Desde muito nova, não brigava com a minha mãe. Dava um jeito de fazer as tarefas que ela me pedia e depois que eu fazia tudo, ia para a rua também. Porque na minha casa não havia aquela rigidez muito grande. Depois que eu saía de casa, não ficavam atrás de mim, me policiando. Mas bem que eu gostava de fazer as brincadeiras dos meninos.” Ela também conta que percebeu que ser mulher a faria ser vista de outra forma, em função da repressão sexual que se fazia e se faz às mulheres, com todos os tabus que se impõem sobre elas.
As férias, que ela gostava de passar na fazenda, vinham com o mesmo tipo de acordo. Trabalho primeiro, diversão depois. No período escolar, Nair foi apresentada ao esporte. Entre 1961 e 1962, inclusive, ela organizou um time de futebol feminino, algo que era muito incomum para época. Pelo bom desempenho que alcançou na atividade esportiva, foi convidada a dar aulas de vôlei no colégio no qual estudava.
“Eu sinto que as mulheres sempre têm que montar estratégias para a sobrevivência. Essa é a minha conclusão. A minha vivência da vida inteira me mostrou isso.”
Por conta das aulas de vôlei, Nair ganhou uma bolsa, mas não comunicou ao pai. “Não quero que ninguém siga o meu exemplo, mas eu fiz isso. Quando ele me dava dinheiro para pagar a mensalidade do colégio, eu ficava para mim. Eu sentia que aquele era um direito que eu tinha. Que aquele era o salário que eu estava recebendo por trabalhar no colégio. Com isso, eu comprava as coisas que precisava e assim aconteceu. Eu nunca falei, nem para ele, nem para a minha mãe, nem para ninguém lá de casa. Mas essa passagem também faz parte da minha história.”
Sair para o mundo
Quando se formou no ensino médio e no curso normal, novamente Nair precisou adotar outra estratégia para não cair nos papéis que aguardavam às mulheres naquela época. “O destino traçado para mim era casar com um fazendeiro, ter muitos filhos, enriquecer. Vi o destino da minha mãe e não o queria para mim. Tive muitos conflitos. Muito mais tarde, eu fui compreender a origem dela, o casamento para ela foi muito importante. Foi uma grande solução na vida dela, que era muito pobre.” Nessa época, Nair já participava do movimento estudantil e da Igreja Católica, nos quais tinha um papel destacado de liderança. Ambos tiveram um caráter de formação importante, segundo a assistente social.
Naquele período, ela entendeu que sair para continuar estudando era o seu destino. Traçou, então, outra estratégia. O pai argumentara que, como mulher, ela deveria permanecer em Araguari junto à família, mas Nair disse que isso não a impediria de estudar. Assim, ela foi para Uberaba, onde começou a estudar Letras, o único curso superior permitido a mulheres. Em um encontro que participou, teve contato com alunos do curso de Serviço Social, em Belo Horizonte, e descobriu que era esse o curso que realmente queria. Sem falar com os pais, fez o vestibular e passou. Com o apoio das amigas, voltou à casa dos país para comunicar seus planos. “Falei: passei em BH, agora vou querer estudar em BH. Meu pai disse que não tinha a menor condição de me sustentar na capital. Ele me respeitava. A gente tinha uma profunda relação de amor, de carinho, minha mãe também. Eles nunca me tolheram. Nem davam conta de tanta gente, éramos muitos filhos.” Ela firmou um compromisso com o pai. Ele a ajudaria com o dinheiro da passagem e das primeiras despesas, e ela nunca mais iria pedir dinheiro a ele. Assim foi feito.
Em 1964, ano do golpe militar, Nair chegou a Belo Horizonte. Em um primeiro momento, seguiu com suas atividades, inclusive no movimento estudantil. Foi durante uma assembleia que ela encontrou o seu companheiro de vida. José Luiz Moreira Guedes, com quem completa 54 anos de casamento nesse ano. “Olhei para aquele rapaz assim: nossa que moço interessante, bonito, que fez a pergunta mais inteligente. Nasceu aquela pergunta dentro de mim. Será que um dia você vai conseguir em uma assembleia falar e fazer uma pergunta desse nível?”
Partos
O casal seguia na militância. Nair engravidou, e eles se casaram no Rio de Janeiro. Lá ela aprendeu sobre o parto sem dor. “Me preparei tão bem, que eu falo às pessoas que não tive dor, em nenhum dos partos, e as pessoas não acreditam. É um parêntesis que eu faço na minha condição de mulher. Tenho muito orgulho de ter descoberto e ter vivido no meu corpo, não senti nenhuma dor nos meus partos. Sou apaixonada com esse movimento dos partos humanizados.” Ela lamenta o fechamento da Casa de Parto da UFJF e reverencia emocionada a professora aposentada da UFJF Betânia Maria Fernandes. “A hora do parto é um momento muito sublime, muito especial para mulher. Eu tive um orgulho de ser mulher, parideira e sem dor nos partos. É uma incompreensão que a Casa de Parto tenha sido fechada, um crime contra as mulheres de Juiz de Fora. É uma decisão que precisa ser repensada.”
Exílio
Com o acirramento da situação política do Brasil durante a ditadura e vivendo na clandestinidade, Nair foi presa em Recife, em 1969. Ela estava grávida novamente, quando entendeu que o cerco se apertava e teria que sair do país. Ela e José Luiz foram exilados para a França, onde permaneceram por seis anos. Na Europa, Nair finalizou o curso de Serviço Social e seguiu no movimento político, de luta pela anistia. Ainda na França, trabalhou como assistente social com estrangeiros. Uma situação que a marcou.
Ela precisou mediar um conflito entre um casal de origem árabe. “Ela era violentamente espancada pelo marido. Fui com uma intérprete até ela, para tentar apaziguar, colocá-la em um abrigo. Foi quando ele bateu na porta. Eu pensei: vamos ser dizimadas. Não foi na ditadura, mas será aqui. Conseguimos conversar e deu certo, mas eu não soube o destino daquela mulher. Vi o conflito cultural. A liberdade das francesas e a falta de liberdade das árabes.”
Depois do episódio, ela teve certeza:
“Fiz um propósito político, tínhamos tido a anistia, estávamos construindo novamente a democracia. Não vamos ter democracia, enquanto tivermos esses casos escabrosos de mulheres assassinadas e maridos soltos. Ninguém vai me dizer o que fazer politicamente. Eu vou trabalhar com as mulheres. É um objetivo que eu tenho.”
Voltando para o Brasil, Nair se elegeu vereadora em Juiz de Fora em 2001. “Muitos não entendiam quando subia na tribuna e começava a debater, a chorar, a discutir. Apresentei vários projetos, mas dois consegui aprovar, meus colegas gentilmente me ofereciam água. Me dava o direito de chegar lá. Eu explicava: nós, mulheres, não aprendemos a falar em público. Não fomos treinadas para fazer política. A gente chora mesmo, agora me refiz, vou continuar me raciocínio. Foi uma experiência muito boa.” Depois de toda essa trajetória, ela diz que se orgulha de ser mulher. “Mas gostar de ser mulher é uma conquista, porque por muito tempo eu não gostava. Pensava que é mais fácil ser homem.”
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