Tribuna abre sĂ©rie com mulheres sobre violĂȘncias cotidianas
“Na pele delas” traz relatos sobre a luta contra abusos naturalizados que impactam a vida feminina
âEnsinamos as meninas a sentir vergonha. âFecha as pernas, olha o decote.â NĂłs as fazemos sentir vergonha da condição feminina, elas jĂĄ nascem culpadas. E crescem e se transformam em mulheres que nĂŁo podem externar seus desejos. Elas se calam, nĂŁo podem dizer o que realmente pensam, fazem do fingimento uma arte. Conheço uma mulher que odiava tarefas domĂ©sticas, mas fingia que gostava, pois fora ensinada que âuma boa esposaâ tem de ser âcaseiraâ. Ela por fim se casou. A famĂlia do marido começou a reclamar quando seu comportamento mudou. Ora, na verdade, ela nĂŁo mudou. Apenas se cansou de fingir ser o que nĂŁo eraâ, o trecho acima faz parte do discurso âNĂłs somos todos feministasâ, da escritora nigeriana Chimamanda Adichie, que se destacou, mundialmente, por sua luta pela igualdade entre os gĂȘneros.
A passagem que a autora descreve serve de exemplo de como as mulheres, alĂ©m da violĂȘncia fĂsica, enfrentam tambĂ©m o que Ă© chamado de violĂȘncia subjetiva. Um tipo de violĂȘncia que acontece no seu dia a dia e que, Ă primeira vista, parece pequena, de tĂŁo naturalizada, mas impacta muito a vida feminina. Para a pĂłs-doutoranda em Psicologia e professora da Liga AcadĂȘmica de Psicologia Social e ComunitĂĄria (Laço), vinculada ao Curso de Psicologia do Centro de Ensino Superior (CES), Lara Brum de Calais, ao se pensar como esses abusos cotidianos impactam a vida da mulher, Ă© preciso, primeiro, reconhecĂȘ-los. âEstamos acostumadas a chamar de violĂȘncia aquilo que Ă© visĂvel, como uma violĂȘncia fĂsica, as situaçÔes de violĂȘncia urbana. A que nĂŁo Ă© visĂvel, na ĂĄrea da psicologia, Ă© chamada de violĂȘncia psicolĂłgica ou violĂȘncia subjetiva. EntĂŁo, Ă© preciso o reconhecimento como violĂȘncia dessas ocorrĂȘncias cotidianas contra mulheres, porque geram sofrimentoâ, explica.
Ainda de acordo com Lara, Ă© necessĂĄrio reconhecer que essas violĂȘncias sĂŁo fruto de uma construção histĂłrica, na qual a condição da mulher foi estruturada a partir de relaçÔes de opressĂŁo e de desigualdade de gĂȘnero. âIsso tem como alicerce uma sociedade machista e patriarcal. Esses pilares, unidos a outro que Ă© o racismo, vĂŁo produzir, historicamente, essas violĂȘncias e vĂŁo criar diferentes condiçÔes de vulnerabilidade ou de sofrimento para as mulheresâ.
Dessa forma, nĂŁo se pode considerar que a violĂȘncia ou os abusos direcionados Ă s mulheres sĂŁo os mesmos para todas. âExistem diferentes formas e afetam de diferentes modos as mulheres, por exemplo, as mulheres negras, as transexuais, as mulheres pobres, moradoras de zonas perifĂ©ricas dos centros urbanos. A desigualdade vai se destacar nesse sentidoâ, pontua Lara.
Ao trazer Ă tona essa reflexĂŁo sobre a violĂȘncia naturalizada contra as mulheres, a Tribuna inaugura, neste domingo (8), Dia Internacional da Mulher, a sĂ©rie âNa pele delasâ. Ao longo da semana, a cada dia, uma mulher irĂĄ contar aos leitores como foi impactada, transformada ou atĂ© ferida, ora por comportamentos e situaçÔes, ora por palavras e gestos, na sua condição de ser mulher. Neste domingo, a atleta de futsal Marina Loures conta como nĂŁo deixa de se posicionar ou apontar situaçÔes em que o machismo se faz presente na sua vida e de outras mulheres.
Venda nos olhos
Para as mulheres, Ă s vezes, Ă© muito difĂcil detectar esse tipo de abuso, e essa venda nos olhos tem ligação com a formação da subjetividade de cada uma e estĂĄ relacionada com a cultura, o contexto histĂłrico e questĂ”es polĂticas e econĂŽmicas. âPodemos dizer que nĂłs mulheres fomos formadas a partir de uma subjetividade patriarcal, ou seja, que reconhece o modelo patriarcal como supostamente âcorretoâ e que vai produzir o que Ă© considerado normal ou anormal na nossa sociedade. EntĂŁo, temos dificuldade de detectar essa violĂȘncia, porque estamos normatizadas, enquadradas dentro desse modelo de sociedade, que vai legitimar, muitas vezes, o lugar de mulher mĂŁe e dona de casa como um lugar supostamente corretoâ, considera.
HĂĄ muitas mulheres que se colocam como culpadas no que diz respeito aos comportamentos abusivos. Na visĂŁo de Lara, essa culpa tem ligação com um cenĂĄrio machista e sexista. âAprendemos que devemos sorrir para determinadas situaçÔes, que nĂŁo pode sentar de determinada forma, que se deve agir de determinada forma para conseguir um casamento. EntĂŁo, hĂĄ uma sĂ©rie de coisas que colocam as mulheres nesse lugar de culpa.â
Momento de instabilidade
Dados estatĂsticos nĂŁo conseguem traduzir a realidade dessa violĂȘncia que nĂŁo se escancara, mas o contexto histĂłrico atual, que aponta para mudanças de comportamentos, pode provocar insegurança tanto nos homens quanto nas mulheres na lida entre os sexos, gerando abusos. Lara Calais pondera que o momento Ă© marcado por mudanças que envolvem grandes ondas de pensamento e disputa de narrativa. âTemos uma grande onda conservadora que tenta manter determinados processos e temos uma grande onda de resistĂȘncia feminista, que vem trazendo avanços significativos para a vida das mulheres. De fato, vivemos um momento instĂĄvel, porque essas mudanças estĂŁo em pleno acontecimento.â
Para ela, a tecnologia Ă© um elemento forte na contemporaneidade, que obriga reflexĂ”es sobre o modo como as relaçÔes subjetivas e objetivas estĂŁo sendo mediadas por ela, principalmente com o advento das redes sociais. âConsidero que existe uma potĂȘncia grande, quando se consideram as diferenças geracionais. Por exemplo, mulheres, entre 40 e 50 anos, que tiveram uma formação sobre o que Ă© ser mulher muito relacionada ao casamento, a situaçÔes de trabalho e Ă famĂlia, e mulheres, de 30 anos, que tiveram condiçÔes relacionadas a estudo, marcando diferentes condiçÔes de ser mulher em nossa sociedade, com episĂłdios distintos para negras e trans. E hĂĄ ainda uma geração mais recente, que tem relaçÔes diferentes com o prĂłprio corpo, com a sexualidade, com a experiĂȘncia na relação com o outro, com a tecnologia e que vem de fato conseguindo entender que as mudanças estĂŁo acontecendo e que existem avanços para as diferentes experiĂȘncias de ser mulher.â
Lara assinala que os movimentos sociais, os coletivos e as expressĂ”es artĂsticas tĂȘm feito resistĂȘncia, luta por garantia de direitos e denĂșncia desses abusos e violĂȘncias. âTemos conseguido criar fissuras nesse modelo de sociedade que possam trazer mudanças efetivas para essas condiçÔes de desigualdades que nĂłs vivenciamos.â
Desafios e o papel do homem
Apesar dos avanços, ainda hĂĄ desafios para que a mulher tenha sua dignidade respeitada, como a superação e criação de estratĂ©gias para o enfrentamento contra o machismo. AlĂ©m disso, Lara ressalta que Ă© preciso explicitar os movimentos femininos e as conquistas conseguidas ao longo do tempo, como tambĂ©m questionar a ideia de dignidade. “Porque a dignidade pode ser diferente a partir do lugar de quem olha. Costumo dizer que depende do tamanho da montanha de privilĂ©gios em que estamos sentados em cima. EntĂŁo, se estou sentada numa montanha de privilĂ©gios muito alta, vou olhar o que Ă© dignidade a partir de uma perspectiva. Se a minha montanha Ă© baixinha, uma vida digna, boa ou “correta” Ă© outra coisa. EntĂŁo, costumo falar de uma vida Ă©tica, que crie condiçÔes para que as mulheres sejam respeitadas e protegidas por polĂticas pĂșblicas. E, por Ășltimo, que se reconheçam as diferenças e haja atuação a partir delas, pois se continuarmos com um Ășnico modelo sobre o que Ă© ser mulher, vamos continuar perpetuando esses abusos na sociedade.”
Quanto ao papel do homem nessa conjuntura? “Ele precisa de ser um componente importante nessa luta, nessa construção ou desconstrução. Os primeiros elementos para que ele nĂŁo cometa esse comportamento abusivo Ă© o reconhecimento de si como sujeito construĂdo pelo machismo. Esse Ă© o passo mais importante, ou seja, dar abertura para o entendimento do machismo, porque, muitas vezes, o que vemos Ă© uma posição defensiva como se o feminismo fosse o contrĂĄrio do machismo, e nĂŁo Ă©. O machismo tem a ver com a relação de violĂȘncia, de opressĂŁo em relação ao outro. JĂĄ o feminismo traz a luta por garantia de direitos”, afirma a professora.
Clique aqui e confira a primeira matĂ©ria da sĂ©rie “Na pele delas”, com a juiz-forana Marina Loures.
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