O som e a fúria da performer Raíssa Vitral, do Coletivo Coiote
Artista fala pela primeira vez fala sobre suas ações polêmicas, seu discurso afiado e seu corpo marcado pela luta por um viver livre
Diante de uma plateia, se banha em ervas como arruda, gengibre, salsinha, todas consideradas abortivas. Depois perfura a pele num número que faz a referência à proporção de mulheres que morrem após fazerem abortos clandestinos. Envolta de uma fogueira queimando as tais ervas, e já desnuda, retira da vagina duas bandeiras a favor do aborto legal. Em volta, projeções exibem cenas de igrejas queimando e políticos de extrema-direita discursando. Ao término, retira, uma a uma, as agulhas do corpo e se põe a sangrar. Inteira. A última performance de Raíssa Senra Vitral, exibida em 2018, num festival na província argentina de Córdoba, recebeu o nome de “Ritual Pornô-Terrorista Aborteiro Sudaka”.
O trabalho, segundo a própria artista, versa sobre a maternidade, o lugar da mulher, as fronteiras do corpo e os limites da vida. Se não deixou marcas em quem viu, restou no corpo de Raíssa uma verdadeira coletânea de registros da arte e da vida, se é que existe essa separação. São 11 as tatuagens que se espalham pela pele, incluindo as inscrições nas mãos “lama” e “caos”. Ainda existem os brandings e as escarificações, cicatrizes de performances. Gosta das modificações corporais, diz. E também da dor. Aos 31 anos, dez deles marcados pela presença no Coletivo Coiote, responsável por criações polêmicas, como a “Xerek Satânik”, num evento na Universidade Federal Fluminense, e o ato na Marcha das Vadias, durante a visita do Papa Francisco ao Brasil, Raíssa quer o diálogo. Longe dos holofotes, o grupo retorna agora, e lança, no próximo dia 23, em São Paulo, o livro “Crônicas Coiote” e um curta-metragem.
“O que acho mais legal é abrir o debate sobre o que é arte e o que não é. Tiveram vários textos sobre as performances, foi enriquecedora essa produção de pensamento. Por isso valeu a pena”, afirma a juiz-forana Raíssa. O que é arte para você? “Difícil de definir. Mas sei o que faço e gosto de fazer, que é uma espécie de antiarte, algo vivo. A performance, quando dizem que não é arte, é legitimada pelos convites que nos fazem. A performance é uma explosão do que a gente sente e está vivenciando com o que precisa ser feito no momento. Tem muita pesquisa antes sobre o que quero falar e o que está mexendo comigo. O processo de criação determina ações que queremos fazer e que achamos que vão dizer alguma coisa. O resto todo é intuição. Não vamos ensaiar, porque não é um teatro, mas uma vivência. É viver aquilo naquele momento e ver o que vai rolar.”
O ímpeto
O sangue já existia em sua primeira performance, quando cortou a cabeça de uma galinha durante um evento no Instituto de Artes e Design. “Hoje eu não faria essa de novo”, adianta Raíssa Vitral, aos risos. “É importante ver como mudamos no que fazemos. Hoje tenho a luta contra a morte animal. Para o meu processo foi importante e válido, mas não repetiria”, explica-se a artista, criada pela mãe, numa família amorosa, que a possibilitou estudar em boas escolas até o ensino médio. Aos 17, Raíssa, que tem uma irmã gêmea, engravidou de gêmeos, que nasceram prematuros e exigiram cuidados especiais. Mais tarde tentou vestibular para ciências sociais. Foi reprovada e mais uma vez fez a prova, buscando aprovação em artes e design. Não aconteceu, e ela se mudou, aos 21, para o Rio de Janeiro. “Deixei meus filhos com minha mãe e vinha de 15 em 15 dias. Foi difícil, mas foi necessário. Eu precisava me entender como pessoa, saber quem eu era”, diz ela, filha do lendário punk Marco Aurélio, o Coréia, um dos integrantes da banda IDR (Inimigos do Ritmo). Não se relacionavam muito, conta. Mas foi uma referência? “Foi”, reponde, sorrindo, a jovem que teve a carteira assinada apenas duas vezes, como caixa de um restaurante árabe e fotógrafa num estúdio, por três meses cada experiência. Fora da cidade, atuou fazendo divulgação e portaria de festas e fotografia de eventos até conhecer Bruna Kury, com quem fundou o coletivo artístico cuja estreia se deu numa casa em Santa Tereza, onde apresentaram “Narciso antropofágico”. Na criação, Raíssa expunha o próprio corpo, se masturbava e lia um trecho de “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera. Um amigo definiu: era pós-pornografia.
O rito
Os policiais apontavam nas ruas, a televisão exibia sua imagem, e o mundo a incriminava. Raíssa Vitral e seus parceiros de coletivo sequer estavam certos de se apresentarem na Marcha das Vadias daquele já longínquo 2013. Decidiram em cima da hora. E nas ruas do Rio de Janeiro, durante a Marcha Mundial da Juventude e a visita do papa Francisco, os jovens artistas se despiram e se masturbaram com imagens católicas. As cenas correram o globo. “Quando chegamos em casa, vimos que em poucas horas começaram a chegar muitas mensagens. Recebi muitas ameaças de morte, falando que sabiam que eu tinha filho, família e que matariam todo mundo. Então, fomos para a casa de uns amigos e ficamos fechados durante quase duas semanas. Isso me assustou um pouco”, lembra. “A performance em si durou muito pouco tempo. A gente estava na Aldeia Maracanã, vivendo o desalojo e pensando muito nessa igreja que roubou tudo, violentou e tentou apagar nossa cultura originária. Também pensávamos na matança, no genocídio da população indígena. Da mesma maneira, queríamos denunciar a violência contra os terreiros. Para mim, essa sacralização da mãe, como uma mulher pura, é uma coisa ruim. Para nós essas estátuas eram a representação dessas opressões. Como performance, se durou três minutos foi muito. Mas a repercussão foi grande. Gerou diálogo, e isso é rico”, avalia ela, que, menos de um ano depois, voltou às discussões pela performance “Xerek Santânik”. Valeu a pena? “Acho que devia ser feito naquele momento”, responde.
O grito
Recolher-se foi a única saída diante de tamanha exposição. Mas o gesto foi forçado. Em 2015, numa viagem à Serra do Cipó, Raíssa queimou gravemente o pé, passou por três cirurgias e ficou quatro meses sem andar. Silenciou. E cuidou de reconstruir laços. Depois das performances, ela perdeu a guarda dos filhos e distanciou-se da família. “Foram tempos duros. Passei por um tempo que meus filhos tinham um pouco de medo de mim. Hoje restabelecemos a confiança. Nos amamos. Eles me abraçam. Somos afetuosos”, diz ela, que também tratou de se reconstruir. Durante alguns anos, Raíssa viveu em ocupações, nas ruas, em casas emprestadas e viajou até o Nordeste. Por cinco anos, sustentou-se somente com as artes urbanas, vendendo zines e fazendo malabares. Atualmente ela faz frilas de garçonete para comprar um computador, uma câmera fotográfica e investir em residências artísticas. “Tenho que ter um pouco mais de estrutura para continuar trabalhando. Quero sair um pouco dessa precariedade, também. Hoje vemos uma necessidade de ter um pouco mais para poder escrever, falar, editar vídeos”, pontua a artista, que após passar um ano na Argentina, terra do namorado Braian, regressou a Juiz de Fora, primeiro para morar com a irmã e, agora, numa casa que conseguiu alugar e que divide com o parceiro e dois cachorros. “Fomos para a rua, para a linha de frente. A revolta era muito grande em nossos corpos e em nossas vivências. As performances são o que acho que tem que acontecer num determinado momento, independentemente de quem está fazendo”, observa, certa de que a arte preserva formas e formas de combate. “As coisas mudam, e muda a forma como fazemos as coisas.”