O Brasil é uma noite com mais de 500 anos
Qual é o preço de uma vida? Depende. Para o Flamengo, R$ 400 mil. Para a Vale, R$ 100 mil. Para os donos da boate Kiss, nada. É assim, estipulando valores provisórios para perdas permanentes, que clubes de futebol, mineradoras e empresários usufruem livremente do poder de comprar tudo, principalmente a própria liberdade. Afinal, matar dezenas ou centenas de pessoas e sair impune é algo corriqueiro. Pouco importa se os responsáveis carregarão nas costas o pranto de mães que jamais voltarão a beijar seus filhos, dos filhos que crescerão sem o abraço dos pais, das mulheres que viverão sem o amor de seus maridos. Já os donos da bola retomarão suas rotinas – temporariamente afetada por fatos desagradáveis -, contando os dias para virar a página da sua omissão.
Os agentes da morte têm a seu favor o esquecimento, uma cultura entranhada nas raízes de um povo que não consegue praticar a empatia porque está cansado de viver as próprias dores. Na sociedade do cada um por si e Deus por quem acredita nele, lembrar é acumular sofrimento desnecessário, mesmo que as consequências do apagão sejam a repetição de erros que continuarão fazendo novas vítimas. Brumadinho está aí para confirmar que Mariana não foi o bastante para provocar mudanças. E o Ninho do Urubu é só um remake da Boate Kiss, com enredo igualmente repugnante que se repete a cada incêndio sem culpados.
Sem punição criminal e financeira, os grandes seguem se tornando maiores. O restante que aprenda a se virar com as ausências, com a mutilação de corpos e sonhos, com a interrupção de suas histórias, esvaziadas pela perda da melhor parte. Enquanto esses são obrigados a se reinventar – superação é a palavra da moda para quem nunca perdeu ninguém -, aqueles seguem sendo exatamente os mesmos. São a melhor versão do “nada muda se você não mudar” e como não estão acostumados a responder por seus erros, vivem plenamente sua existência de privilégios. Pensam como Joe Goldeberg, o protagonista da série Você, exibida pela Netflix. Interpretado pelo ator Penn Badgley, o gerente de livraria alimenta em sua mente doentia a certeza de que “algumas pessoas merecem morrer”, desde que sua pele seja salva.
Na sociedade que acredita existir um preço para tudo, gente está em baixa no mercado. A morte é mais barata do que a construção de alojamentos dignos, do que a criação de tecnologias de armazenamento de rejeitos mais seguras e sustentáveis ou do que a fiscalização do cumprimento da lei dentro de uma boate. Neste contexto perverso de culpa e impunidade, o Brasil é uma noite que já dura mais de 500 anos.