Afonso Juvenal Variz, o proprietário do restaurante Fat Siu Lao
As muitas cores e sabores de uma família que, há mais de três décadas, fundou uma pequena Macau em Juiz de Fora
Carregava consigo, sob a blusa, escondidos, dois pequenos lenços. Num estava contida a imagem de Buda. No outro, uma representação também religiosa, próxima das imagens da Virgem Maria e do menino Jesus do catolicismo. Ao atravessar a fronteira do caos rumo à esperança, Wong levava o tecido que hoje, emoldurado, recebe os clientes da pequena Macau que edificaram, ela e o marido Afonso, no Bairro Aeroporto com o nome de Fat Siu Lau, cujo significado é Buda da Felicidade. Por todo canto, do artesanato da filha Angelina, feito com as conchas coletadas pelo pai durante suas pescarias, aos nomes de parentes que estampam o cardápio do restaurante, muitas são as referências a representar as tantas e vibrantes cores da família Variz.
Cambojana, a matriarca, budista, fugia da guerra civil que se instaurou em seu país na década de 1960, inflamada pelo Khmer Vermelho, Partido Comunista da Kampuchea, que chegou ao governo em 1975 e permaneceu até 1979, quando conheceu Afonso, natural de Macau, na Tailândia. Tinham 26 anos quando se casaram e compartilharam o desejo de partir da Ásia. Seguiram para a França, onde viveram por um ano. Ele não gostou. Portugal, país do qual Macau era colônia e de onde Afonso comprava produtos para vender em sua região, já não parecia mais um bom destino. Filho de pai português (de Trás-os-Montes) e mãe chinesa, Afonso tinha uma tia morando em Juiz de Fora.
“Não sabia onde ficava”, ri o homem de 70 anos, mais da metade deles, 36, vividos no Brasil.
“Só sabia que existia Copacabana, carnaval, Pelé, Cristo Rei e Roberto Carlos, além do Sérgio Mendes. Cheguei ao Galeão, num voo da AirFrance, em 7 de julho de 1971, às 5h40 da manhã. Vim só para visitar. A parte da Rio Branco se parece com Macau. O prédio da (antiga) Prefeitura se parece com os Correios, Telefones e Telégrafos de Macau. O estilo, o tempo, o sistema, as árvores se parecem com os de Macau. Quando conheci o pessoal daqui, percebi que eles são muito aconchegantes. Comecei a gostar. Quando fui buscar comida, gostei demais. Adorei a feijoada. A de Macau é com feijão vermelho, o sistema é quase igual, mas lá colocamos chouriço de sangue, e não põem laranja. Uma coisa que me espantou no princípio foi o churrasco, porque lá o churrasco é feito com frango, e o daqui é com carne de boi. Fui numa churrascaria na BR-040 e não parava de vir comida. Fora isso, a comida brasileira, principalmente a mineira, é muito parecida com a de Macau, muito cozida, com muito molho”, comenta ele, que fixou-se com os dois filhos e a esposa em Simão Pereira, onde criava galeto numa granja e comercializava no Rio de Janeiro. Mas em 1985 precisou retornar a Juiz de Fora. No Bairro Olga Burnier, onde ainda hoje reside a família, inaugurou o Fat Siu Lau, restaurante que reúne a cozinha portuguesa, chinesa e cambojana.
As mesmas casas
Numa das paredes do restaurante, Afonso aponta para fotografias de sua Macau. Na Avenida Almeida Ribeiro, transformada em Calçadão comercial, passavam carros. O Fat Siu Lau de Macau, primeiro restaurante da colônia, fica no fim da Rua das Felicidades, trajeto de prostituição, no qual as mulheres se exibiam no primeiro andar e, no segundo, ficavam os quartos, além de servir para o fumo do ópio. Com os pais – ele funcionário público e professor, ela, dona de casa – e quatro irmãos, Afonso cresceu num lugar pacato.
“Era como São João Del Rei com a parte histórica, como Paraty, no Rio de Janeiro. Tínhamos tudo na nossa vida. Conheci mais da metade do mundo”, conta ele, católico apostólico romano, que concluiu os estudos e, comerciante, comprava vinhos, azeites, e outros produtos portugueses para vender em Macau, onde nasceu seu filho mais velho, Abílio. Angelina é brasileira. Ele é professor no curso de engenharia elétrica da UFJF. Ela, graduada e pós-graduada em administração, dá continuidade ao trabalho dos pais no comando do restaurante. Aposentado, e com a esposa com a saúde fragilizada, Afonso continua a tomar conta do salão, enquanto Angelina se responsabiliza pela cozinha. “Desde pequeno, gostava de cozinhar, via a minha mãe e gostava. Aos 7 anos, aprendi a pescar. Na minha família, todo mundo pesca, mas eu tenho o espírito. Não sei porque não nasci pescador. Quando tenho tempo, vou para o Espírito Santo pescar”, conta o patriarca.
Os mesmos paladares
Amarelas, as paredes do restaurante foram pintadas por Afonso e pela filha. O contrastante vermelho compõe as referências com a China também presente em frases que exaltam a felicidade e o bem-estar. Em Simão Pereira, abriram o primeiro negócio com o nome Sekai, cujo significado é mundo. O bar foi a raiz do Fat Siu Lau. “Quando comecei o restaurante aqui, era para ser uma coisa pequena. Fui o primeiro a fazer peixe meio cru. Minha esposa queria fazer cambojano, mas naquela época quase não tinha restaurantes japoneses. Quase quebrei. Alguns temperos, como o cambojano, aqui não dá. No princípio, colocávamos, e as pessoas até tremiam, porque tinha muita pimenta, era muito azedo. À milanesa aqui, fazemos como em Macau, com o tempero dela (da esposa). Ela é do Sul de Camboja, de um porto que era colônia francesa. O peixe inteiro vem da minha mãe, mas mudei um bocadinho. Sempre mudei, até que, agora, está bom. Não somos chefs, nossa comida é caseira. Aqui fazemos o que comemos em casa. Os nomes do cardápio são todos da família”, diz ele, que relacionou os pratos preferidos dos parentes, dando-lhes seus nomes no cardápio.
Recordações de um passado que Afonso não conjuga com melancolia. Sente-se mais brasileiro. E parte, sobretudo. “Cheguei a Juiz de Fora e o (bairro) Cascatinha estava loteando. Era só terra. Haviam só dois prédios altos, aquele na esquina da Rio Branco com a Halfeld (Edifício Clube Juiz de Fora) e o do Ritz Hotel. Hoje a cidade é outra. Ainda é um lugar bom, para a educação, para a saúde, a comida não é muito cara, viver está razoável. No meu tempo não tinha nada (de crimes), deixava a porta da casa aberta, e ninguém fazia nada. Mas é inevitável. Só o trânsito que está muito apertado”, sorri.
As mesmas naus
Desde aquela manhã de 1981, Afonso não mais fez o trajeto de volta. Os filhos retornaram. “É muito caro. E aqui, para ganhar dinheiro, é muito difícil. Lá, para ir à Tailândia é muito barato”, ri. As semelhanças com sua Macau amainaram as saudades, diz. “Macau fala um português mais aberto, como o Brasil. Quando estava na França, tinha muitos portugueses onde jogava futebol, no pátio da Basílica de Saint-Denis, no domingo, e eles me chamavam de brasileiro, por conta do português mais aberto”, pontua. “Macau é pequena, nunca foi colonizada, nunca conseguiu falar só o português. Os chineses falam chinês, têm suas escolas. Se quiser estudar português, tudo bem, mas a porcentagem (de falantes) é muito pequena. Macau não foi bem uma colônia. Não foi conquistada, foi dada pelos chineses. O imperador ofereceu Macau para Portugal depois da primeira nau de Vasco da Gama”, conta, lembrando-se das ilhas Taipa e Coloane.
“Em uma delas, tem uma caverna que parece um túnel e tem praia e tudo lá dentro. Os piratas entravam e ficavam por lá, esperando para assaltar os barcos chineses”, acrescenta ele, que, do português, do inglês e do chinês – línguas nas quais é fluente -, escolheu a última para ser falada em casa. “Quando a conheci (a esposa), ela não falava minha língua. Nem eu a dela. Começamos a falar em inglês, então. E começamos a nos entender”, lembra ele, que ensina a netinha, filha de Abílio, a também falar chinês. Uma raiz nunca extermina a outra.
Tópicos: gastronomia