Contador de histórias, juiz-forano revive crônica da Copa de 1958
Vicente Clemente, do Bairro Borboleta, relembra conto de quando ouviu o jogo do Brasil em 1958, aos 12 anos, e reencontra professora no local da história 60 anos depois
Contador de histórias por paixão, o advogado e contabilista Vicente Clemente, 73, parece ter um capítulo da própria vida detalhadamente redigido. Descendente da família alemã Clemens, que desembarcou em Juiz de Fora em 1858 na antiga Vila São Clemente, atual Bairro Borboleta, Vicente ouviu, um século depois, Didi, Pelé, Garrincha e companhia liderarem a Seleção Brasileira que seria campeã mundial pela primeira vez na história, na Suécia. E em uma das partidas mais importantes deste ciclo – a vitória de 5 a 2 sobre a França na semifinal de 24 de junho daquele ano, a experiência vivenciada pelo juiz-forano de 12 anos na então Escola Municipal São Vicente de Paula seria transformada em crônica publicada inclusive pela Tribuna em 1994 – ano do tetracampeonato brasileiro, aos supersticiosos.
O conto “O demônio”, de autoria de Vicente, ilustra também o clima dos juiz-foranos em uma Copa do Mundo, ainda sem o primeiro título conquistado. “Escrevi muitas crônicas, inclusive tenho uma pasta com os registros delas, mas esse texto está em evidência desde 1994. Não me lembro de ter feito uma crônica tão marcante. Guardamos recordações da escola. Na época eu tinha 12 anos. Sou formado no curso primário em 1956, mas em 1957 e 1958 minha mãe não tinha dinheiro e conversou com a professora Célia (Maria Rodrigues), que dava aula na escola aqui do Borboleta, e pediu para ver se ela me aceitava para fazer a quarta série novamente. Eu estava carregando marmita para os trabalhadores nas fábricas – era meu serviço com 11, 12 anos – e minha mãe não queria me deixar sem estudar. Por isso fiz a quarta série novamente. Mas eu gostava muito”, explica Vicente.
Sessenta anos depois, a Tribuna acompanhou e registrou a ida de Vicente ao local que sediou a experiência do juiz-forano. Sala de aula na década de 50, hoje o espaço é utilizado pela Paróquia Santíssimo Redentor, da Igreja São Vicente. O espaço do pátio que recebia as peladas dos meninos ainda existe, logo ao lado da entrada do edifício religioso. E 70 metros distante, ainda na Rua Tenente Paulo Maria Delage, a “professorinha”, como chamada na crônica, também estaria esperando seu ex-aluno. O ano, curiosamente, era especial também para dona Célia.
“Foi o ano em que me casei! Então não esqueço, me lembro perfeitamente, parece que foi hoje. Eu dava aula de manhã, pegava um ônibus no Centro para estar às 13h lá, me preparando para o casamento ainda. E a crônica é muito boa. Aproveitei a Copa de 1958 para eles produzirem. Aproveitava as festas que aconteciam, os jogos, para que todos escrevessem. O Vicente tinha jeito. Sempre que eu propunha uma ideia diferente, ele ia bem. Não esperava que ele fosse ser um futuro escritor”, destaca Célia, hoje com 84 anos.
Paixão, livros e transformação no Borboleta
Os acontecimentos históricos no bairro onde nasceu também foram arquivados por Vicente, personagem importante no registro da história dos alemães em Juiz de Fora, com seu livro “Os alemães e a Borboleta”, de 2008, além do crescimento do Borboleta, onde reside, e da reconstrução da igreja, na obra “O Bairro Borboleta e a Igreja São Vicente de Paulo – suas origens e sua história”, de 1990. A paixão pelo conhecimento foi carregada desde jovem e motivou a indicação da autoria de obras como as citadas.
“Desde os 12 anos, já estudava e gostava muito de ler. Aqui no Bairro Borboleta tinha uma biblioteca do Sesi, e chegou um certo tempo em que eu li todos os livros. Viajava neles. E quem gosta de ler normalmente também quer escrever. Fui criado dentro da religião católica, nasci aqui no Borboleta. Vivíamos um pouco afastados”, conta Vicente.
A queda da antiga Igreja e a substituição pela atual foi ideia de moradores da comunidade com a participação do contador de histórias. A conquista de verba, curiosamente, se deu graças à descendência de pessoas como Vicente.
“Vimos que a Igreja precisava de uma melhoria, até que sugeriram aproveitar que somos descendentes de alemães e fazer um movimento para buscar dinheiro na Alemanha. Eu era tesoureiro das festas alemãs e comecei a apanhar documentos e tirar fotos. O arcebispo Dom Juvenal Roriz falou que na Alemanha tinha uma entidade advenit que conseguia fundos para ajudar a Igreja da América Latina. Ele assinou a solicitação, o padre Freitas, que era do bairro, também, assim como eu. Mandamos tudo para lá, e o advenit ajudou com três remessas em marco alemão.
Conseguimos, então, derrubar a igreja antiga para fazer a nova. E em uma dessas festas alemãs, diante de todo o material que eu tinha, me deram a ideia de escrever o livro. Para conseguir editá-lo, fui de casa comercial em casa comercial pegando C$ 5 mil da época em cada local. Com isso consegui levar em uma gráfica dos Gasparette, e fizeram 500 livros. Me entregaram em cima da hora, no dia da festa. Autografei 360 em uma noite de festa. Todos diziam que tinham que ter o livro em casa. E me colocou na cabeça que eu deveria escrever mais livros quando me aposentasse”, relembra.
‘O demônio’
Por Vicente Clemente
O mês de maio já se esgotara ou era princípio de junho de 1958, nem sei bem. O certo é que ainda estávamos no outono e nos campos gelados da Europa, lá na Suécia, a Copa do Mundo de futebol estava pegando fogo. Na pequena e tranqüila Borboleta (antiga Vila São Vicente), Dª Célia, a professorinha, começava sua aula de 4ª série do primário. O lugarejo poder-se-ia assim denominá-lo, era uma antiga colônia de imigrantes alemães e tal como a professora, seus alunos também, pelo menos a grande maioria, era descendente dos colonos imigrantes de 1858. O menino saíra de casa, morava bem defronte ao galpão cedido pela Igreja onde funcionava a sala de aula, com o uniforme impecável. A aula começava e os meninos estavam intranqüilos. Chegou a hora do recreio e a molecada, no pátio improvisado, logo organizaram uma pelada, como de costume. Jair, um canhoto, lides nessas horas, chamou para seu time o que havia de melhor: Bento, Vilmar, Paulinho e o menino. O resto formava o outro time. A bola era de panos metidos em meias. Estavam já suados e alguns, como o menino, que saíra de casa impecavelmente trajado, sujos e empoeirados. De repente, num potente “chute de fora da área”, Jair, o canhoto, acabou com o jogo: seu tiro violentamente atingiu a taboa da carteira onde a loura professorinha se assentara comodamente para saborear sua merenda. Um chute milimetrado levou a bola molhada e suja de barro a aspergir sujeiras à sua volta atingindo o alvo vestido de Dª Célia, que no susto, deixou cair seu lanche. Lívida e furibunda, ordenou o fim do recreio e ainda passou uma descompostura em toda a equipe. Cabisbaixos voltaram todos para a sala de aula, mas, todos tensos. O Brasil estava entrando em campo lá no Velho Mundo, para enfrentar um dos melhores times até então, a França. O som do rádio do Bar do Veveu, ali perto, ligado, chegava-nos de longe, mas, os gritos das pessoas ouvintes, nos indicava o termômetro do jogo. A professora mal conseguia prender a atenção da turma. De repente uma gritaria vinda do
Bar, parou a aula. O Ademar, que apelidaram de “Correio sem selo”, pediu para sair e ver o que acontecia. Antes mesma da autorização, escafedeu-se pelo portão e em segundos, voltava esbaforido com a notícia: – Gol do Brasil, Pelé! Dª Célia, até então alheia, abriu um sorriso, vendo a vibração de sua classe, mas, continuou a aula. Daí a pouco, mais gritaria e fogos. O Ademar, nem pediu licença, esgueirando-se sala afora e antes da Professora se dar conta, voltava esfuziante, contagiando a todos: – Gol do Brasil, Vavá! Aleatórios à aula e sem sossego, estavam todos, mas a Professora mantinha a todos presos e “sob controle”. Um “oh” dos torcedores mais pertos do rádio chegou aos ouvidos da turma. Dessa vez, o Jair, de um salto, foi ver o que acontecera. Voltou cabisbaixo, a França visitara nossas redes. Kopa, o artilheiro da copa descontara. Qual não foi nossa surpresa, quando Dª Célia, concitou a todos a rezar uma Ave-Maria para pedir proteção para o Brasil. O menino pensou consigo mesmo: – A Suécia é tão longe, será que suas orações chegariam lá no tempo preciso? Ajoelhados, contritos começaram a rezar: – Ave-Maria, cheia de Graça…, antes de chegarem “entre as mulheres”, um foguetório vindo do Bar do Veveu, parou nossa oração. Nosso repórter, Ademar, já voara pelo portão para saber quem fizera mais um gol. Certamente era do Brasil e Garrincha estourara as redes francesas.
A professorinha não conseguiu mais segurar ninguém. Encerrou a aula naquele momento. Antes de dispensar a turma, mandou:- Amanhã quero uma “composição” sobre a participação do Brasil nesse Jogo de semifinal da copa do mundo. O menino e seus colegas foram todos para a porta do Bar do Veveu ouvir o resto do jogo. O comentarista deliciava os ouvintes com seus adjetivos, especialmente sobre Garrincha, dizia ele: – é demais, Garrincha faz diabruras com os franceses, parece ter o diabo no corpo, deixa seu marcador sentado no campo e diabolicamente passa, cruzando a bola sobre a área… Foi um dia maravilhoso. O Brasil vencera a França, na partida semifinal da copa do mundo de 1958 e deixou aquele menino de 12 anos e seus companheiros, lá da Borboleta, felizes.
Sim, naquela hora o menino era feliz. Foi para casa com todas aquelas palavras do comentarista da Rádio Nacional, na sua mente. No dia seguinte, a primeira coisa que Dª Célia pediu a todos, foi a redação. A do menino mereceu elogios, já pelo título que deu: – “GARRINCHA, O DIABO DAS PERNAS TORTAS”. Desenvolveu então bela composição sobre a nossa façanha contra a famigerada França, até então o “bicho-papão” da copa. Os companheiros comentavam: – Poxa, poderia ser até manchete de jornal, o nome que o menino dera ao seu trabalho! Qual não foi o espanto de todos, principalmente o do menino, quando no dia seguinte a Professora levou para a aula um jornal do Rio de Janeiro, que estampara baita manchete, encimando uma foto de Garrincha “entortando” seu marcador: – “GARRINCHA, O DEMÔNIO DAS PERNAS TORTAS”. O menino ficou estático e arrepiado… Paradoxalmente ao cantor e compositor Ataulfo Alves, ELE ERA FELIZ E SABIA.