Um certo José que faz música sorrindo
Virtuoso guitarrista há mais de meio século, Zezinho conta sobre os muitos voos e o porto em Juiz de Fora, onde ganha, aos 75 anos, documentário reverenciando sua trajetória
A sensação que dá é que, se pudesse, Zezinho se comunicaria dedilhando a guitarra. Os dedos falam. “A música é meu alimento. Não vivo sem ela. Conhece uma pessoa que ama muito aquilo que faz? Eu sou assim”, explica, sorrindo, para logo fazer as cordas vibrarem ao ritmo de bossa-nova. Aos 75 anos, José Fausto Silva mantém o fascínio que o conquistou ainda jovem. “Quando prestei o serviço militar, comecei a pegar o violão e ficar brincando. Tinha um vizinho que tocava, fazia serenatas. Um dia perguntei: ‘Se eu comprar um violão, você me ensina?’. Ele, então, me deu cinco aulas sem cobrar, e o resto aprendi sozinho. Sou autodidata mesmo. Naquela época não havia informações como hoje. Eu ouvia o rádio e ia crescendo no instrumento. Um ano depois que dei baixa no exército, comecei a luta, fui para Maringá para tocar numa banda. Nunca mais parei”, recorda-se ele, cujo repertório de partida reunia grandes nomes da guitarra nacional e internacional. “Comecei ouvindo Wes Montgomery, Barney Kessel e Jim Hall. No Brasil tinha o Bola Sete, o Laurindo de Almeida, que logo foram para os Estados Unidos e por lá ficaram.”
Para o mais velho dos cinco filhos de uma dona de casa e um caminhoneiro, nascido no Bairro São Bernardo e criado no Nossa Senhora Aparecida, onde ainda hoje reside, a escolha pelos acordes exigia pulso forte. “Naquela época, a música era discriminada. Sempre diziam: isso não é profissão! Hoje já não é assim. Todos querem ser músico, independentemente se são formados como médicos, engenheiros ou advogados. Mas também mudou muito o cenário. Hoje, bandas e cantores sertanejos começam e já ficam ricos, enquanto que na música mais séria, a que é mais arte, muitos precisam ter outro ofício, porque tudo é suado e sem garantias”, conta o músico que sempre contou com o brilho nos olhos dos pais. “Quando minha mãe e meu pai me viram tocar, ficaram muito felizes. Lembro que tinha um restaurante bacana no Morro do Cristo, e era meu pai quem me levava, no carro da firma. Meu pai, apesar de ter sido motorista de caminhão, era culto. E meus filhos falam isso: cultura não é ter faculdade, que é para onde a gente vai para ter uma profissão, não necessariamente para ter cultura.”
Tocar a família
Voar era preciso, e Zezinho conheceu o Sul do Brasil tocando em diferentes formações. Até que regressou a Juiz de Fora, naquela mesma década de 1960, e assinou contrato com a mais famosa casa de shows da cidade, o Raffa’s, de um audacioso Rafael Jorge, que bancou a vinda para o espaço no segundo andar da Galeria Pio X de nomes de peso da música nacional, como Maysa e Dolores Duran. Por ali Zezinho permaneceu 16 anos. “Era a melhor casa noturna da cidade. Foi muito legal trabalhar lá. Conheci muita gente importante, muitos artistas de nome. E alguns quiseram me levar, como a Leny Eversong, a Angela Maria, o Cauby Peixoto e a Hebe Camargo. Mas eu já não queria, porque minha prioridade era cuidar dos meus filhos. Sou feliz hoje por ter a família que tenho e por fazer o que faço”, emociona-se o homem que na década de 1970 rumou para São Paulo, para trabalhar em importantes casas da época. Havia mais liberdade nesse papel do que acompanhando cantores. “Eu morava num prédio ao lado da antiga TV Globo. Nesse prédio também morava o Miltinho Batera e o Joãozinho da Percussão”, lembra. “Quinzenalmente vinha a Juiz de Fora. Trabalhava à noite e, durante o dia, para não ficar à toa, resolvi fazer um curso técnico de eletrônica. Já recebi propostas para trabalhar nessa área, com carteira assinada, mas a arte sempre esteve em primeiro lugar. Eu me aposentei como músico”, orgulha-se, enumerando passagens pela movimentada Savassi, em Belo Horizonte, além do superlativo transatlântico Anna Nery. “Já joguei muita oportunidade fora. Só para os Estados Unidos joguei três”, ri. A esposa, os cinco filhos e os três netos falavam mais alto ao coração. Casados há 53 anos, Lonjaney e Zezinho se olham e sorriem, a confirmar. Ela prefere sertanejo e dorme cedo. Ele ouve e toca jazz e bossa e se apresenta a noite. “A gente se completa”, ele diz.
Tocar sorrindo
Não foi Zezinho quem escolheu a guitarra. “Ela é que me escolheu”, diz o músico. Tem ouvido absoluto? “Absoluto eu não sei se ele é, mas um bom ouvido sei que tenho. Escuto a música e já consigo tocar”, responde ele, que tem as mais de cinco décadas de carreira reverenciadas no documentário “Zezinho: uma vida feita na guitarra”, com direção de Juliano Botti e Pedro Carcereri, e lançamento nesta segunda, 25, às 19h, no Brasador Restaurante (R. Machado Sobrinho 146 – Alto dos Passos). Numa euforia contida pela timidez e pela humildade, ele se diz feliz com o reconhecimento. “Nunca fui vaidoso. Sempre fui uma pessoa simples. Tenho colegas que sempre querem aparecer. E se tiverem que pagar para aparecer, fazem isso. Hoje entendo e nem acho errado, mas não sou assim. Acredito que as coisas devam acontecer naturalmente”, afirma ele, num momento da vida em que se permite encontrar na música apenas o prazer. “A rotina que eu tinha ficou no passado, como os meus 16 anos no Raffa’s, três anos de Othon Palace Hotel, e a experiência nas emissoras de TV como a Industrial, onde fui convidado para montar um grupo para acompanhar calouros. Hoje a minha rotina é trabalhar com os eletrônicos, em casa, pegar o violão para estudar e, de vez em quando, fazer um show”, conta, numa voz grave e bela. “Tem gente que me pergunta porque não canto. Mas se eu cantasse, não tocaria a guitarra que toco. Não dá para assoviar e chupar cana ao mesmo tempo. E eu seria mais um cantor que se acompanha ao violão.”
Tocar o tempo
Em casa Zezinho tem um violão comprado; outro ganho há 20 dias do dono da loja em que compra instrumentos, que aprendeu o ofício de luthier e presenteou-lhe com uma de suas primeiras criações; uma guitarra comprada há alguns anos; e outra, presente do amigo Emmerson Nogueira. “O violão hoje me serve mais para estudar. Quando vou tocar é a guitarra que escolho”, diz ele, que devolveu à música a mesma generosidade com que foi recebido por ela. “Tem uma cantora que começou pelas minhas mãos. Eu não a conhecia, mas me indicaram para ela, que me ligou. Ela era caixa no Bahamas e dizia que tinha um evento para fazer mas nunca tinha cantando profissionalmente. Disse que cantava em casa. ‘Então você não tem repertório’, falei. Ela buscou e me mostrou. ‘Você sabe o tom do que você canta?’, perguntei. Ela disse que não,e eu coloquei tom em tudo, ensaiei, e, no outro dia, fomos nos apresentar. Dei as dicas, e ela arrebentou. Não continuei com ela, porque sempre quis ser livre. E ela, a Sandra Portella, venceu”, diz, sorrindo e dedilhando as cordas. É o que o move. “Do que está rolando ultimamente, não tenho ouvido nada. Procuro escutar o que gosto. Djavan, por exemplo, se você procurar, não vai encontrar nas mídias mais populares mais. Assim como Ivan Lins, João Bosco. Eles não param e fazem shows no Japão, Inglaterra, Estados Unidos”, comenta. Alguma música é preferida? “Bossa-nova. Toda ela é boa”, responde, e dedilha “Wave”, de Tom Jobim. “Vou te contar/ os olhos já não podem ver,/ Coisas que só o coração/ pode entender.”