O mais importante em um acidente é aprender com ele e não buscar culpados
PUBLIEDITORIAL
Confira a entrevista com o médio José Ribamar Branco, médico infectologista
Eles matam mais do que a soma de acidentes de trânsito, homicídios, latrocínio e casos de câncer registrados no Brasil. Nem sempre motivados por negligência ou baixa qualidade, os eventos adversos provocados por erros de dosagem ou aplicação de medicamentos, uso incorreto de equipamentos, infecção hospitalar, dentre outros tiram a vida de três pessoas a cada cinco minutos em hospitais públicos e privados, sendo hoje a segunda causa de morte mais comum no país. Os dados são do primeiro Anuário da Segurança Assistencial Hospitalar no Brasil, do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), produzido pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Fundador e diretor executivo do Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente (IBSP), o infectologista José Ribamar Branco, com especialização internacional no tema pelo Institute for Healthcare Improvement (IHI) e pela Universidade de Saúde de Lisboa, fala, com exclusividade, sobre como o assunto está sendo conduzido no Brasil e como é possível reduzir os danos previsíveis aprendendo com eles. Branco, que já presidiu a Sociedade Brasileira de Medicina Hiperbárica e foi diretor clínico do Hospital São Camilo Santana (SP), explica que um dos maiores desafios da segurança do paciente está em auxiliar as pessoas a entenderem o que é isso.
Segurança do paciente
José Branco – O movimento internacional pela segurança do paciente começou em 1999 com o lançamento do livro “Errar é humano” nos Estados Unidos. O relatório apontava que morriam por lá de 44 mil a 98 mil pessoas devido a eventos adversos. Isso chamou a atenção do mundo todo. No Brasil, o movimento surgiu em meados de 2005. O Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente (IBSP) foi fundado em 2011, com foco exclusivo em educação e segurança do paciente. Há um trabalho famoso do Dr. Walter Mendes, que diz que 7,6% dos pacientes internados sofrem um tipo de incidente que poderia ser prevenido e, recentemente, o Anuário da Segurança Assistencial Hospital o Brasil relatou que,a cada cinco minutos, três pessoas morrem em decorrência desses eventos. Trabalhos, em geral, que envolvem número de mortes evitáveis sempre geram muita polêmica. Mas neste caso, o importante é trazer o tema da atualidade para o Brasil. Tanto que o próprio Ministério da Saúde, através do Proqualis, está desenvolvendo iniciativas com centenas de hospitais relacionadas à segurança do paciente.
O desafio
Um dos maiores desafios da segurança do paciente é primeiro as pessoas entenderem o que é isso. É uma ciência que tem se desenvolvido nos últimos 20 anos, baseada em experiências da indústria de alta confiabilidade, como a nuclear e a de transporte de massa. O acidente de Chernobyl trouxe um grande aprendizado. Os acidentes aéreos geraram uma série de estudos. O mais importante em um acidente é aprender com ele e não buscar culpados. Esse foi o grande avanço destas indústrias. Elas desenvolveram processos bem detalhados com foco na segurança e criaram um sistema bem seguro que identifica o erro logo no início. A saúde teve um desenvolvimento muito grande nos últimos 30 anos. A medicina é totalmente diferente, muito mais efetiva, mas com muito mais riscos. Na década de 70, para prestar assistência, bastava um médico e uma enfermeira. Hoje, para um paciente internado em uma terapia intensiva, por exemplo, são necessários 24 profissionais de diferentes formações. O trabalho exige desenho de processos muito bem feito, treinamento adequado, profissionais que saibam trabalhar em equipe, a questão da hierarquia, do maquinário. Enfim, é preciso mudar o modelo como a gente trabalha e isso é o mais difícil. A alta direção precisa entender que estamos em um novo cenário, que coloca o paciente mais em risco, sendo também mais efetivo. É preciso enxergar onde se cometem as pequenas falhas para corrigi-las.
Segurança e custo
Nós criamos uma medicina que avançou muito, incorporou muita tecnologia – que tem um alto custo – mas falta bom senso.Há várias diretrizes de como conduzir diferentes síndromes e em utilizar o recurso de forma adequada, mas há um excesso de uso. Se o paciente chega com qualquer dor de cabeça em um pronto socorro, ele ganha uma tomografia nem sempre necessária. É preciso trabalhar em cima de protocolos com suporte para tomada de decisão. Temos que sair dessa medicina defensiva e alertar a população que não se deve ir a um pronto socorro para fazer checkup; que não se pode chegar em um hospital e pedir uma ressonância, porque as pessoas acham que dor de cabeça é sinal de tumor cerebral. Não é assim que se pratica medicina e isso eleva o custo do sistema de saúde como um todo.
Qualidade de vida
Temos uma população mais idosa, acima de 65 anos, que representa 10% das pessoas que consomem o sistema de saúde, sendo responsáveis por 40% dos gastos. Neste cenário, é preciso ficar bem claro, o que é qualidade de vida adequada e o que é o uso inadequado de recursos. Muitas vezes, a pessoa está com uma doença sem possibilidade terapêutica internada em uma terapia intensa. Hoje, em geral, 40% dos pacientes que estão na terapia intensiva são de cuidados paliativos. Um bom programa com especialistas adequados, geriatras com formação na área e essa pessoa morre,de forma digna, em sua casa ou em uma enfermaria e não necessariamente em leitos de terapia intensiva, sem que haja qualquer benefício para ela. Temos que aprender muito e tudo tem que ser medido, mensurado. A população tem que saber, tem que ser informada ao escolher um hospital sobre índice de infecção, performance, se tem cuidados paliativos, se tem equipe treinada e capacitada para o atendimento específico (se tiver uma equipe que faz tudo é mais difícil ganhar em escala e, consequentemente, ter melhor performance), para que não se interne no escuro.
Mudança dolorosa
Primeiro a gente precisa introduzir na graduação dos profissionais de saúde a lógica de que o mundo mudou, que o trabalho agora é em equipe, que devemos utilizar novas ferramentas. Isso é fundamental para mudar a mentalidade tanto da população quanto a do médico, sobretudo a de que ele tem conhecimento para tudo. Anualmente, são publicados 750 mil artigos médicos, o que significa utilizar muito mais ferramentas de suporte de decisão. O médico precisará interagir, porque o processo decisório não está só com ele, mas com o paciente, com toda a equipe multidisciplinar. Precisa entender que alguns profissionais vão interagir com ele de forma mais efetiva, como o farmacêutico clínico.Quarenta por cento dos danos com eventos adversos estão relacionados à medicação. Muitas vezes, o médico não tem formação em interação medicamentosa, correção de dose em uma população cada vez mais idosa. Essa mudança na cultura é um processo mais lento e doloroso, tanto para o gestor como para o profissional da medicina, mas ela é extremamente necessária. Existem vários movimentos no mundo para engajar este médico eé preciso chamá-lo ao processo, à participação e, com isso, introduzir esta nova maneira de trabalhar.
A indústria
Atualmente, as maiores indústrias do mundo ou são farmacêuticas ou são de alimentação. O modelo econômico de produzir medicamento para o maior número de pessoas com vistas ao retorno rápido do investimento e ao lucro já modificou muito. Mas essa indústria ainda precisa entender que se for usada de forma inadequada – como na questão do uso irracional dos antibióticos, gerando resistência a eles -, a consequênciapode ser a cura da leucemia, mas a morte por uma infecção boba. Certo é que, em 20 anos, não teremos como financiar o sistema de saúde tal como se estrutura hoje. Quem vai pagar a conta?O lucro de dois dígitos é impossível em uma economia estável. Todo mundo tem que aprender a ganhar em escala, ao longo do tempo, em planejamento. Caso contrário vamos matar a galinha dos ovos de ouro.
A remuneração
Esse modelo de pagamento por procedimento é inviável do ponto de vista econômico. É preciso mudar essa maneira. Existe hoje uma tendência de pagar por grupo de doença ou dar um valor x para administrar determinada população. Esse assunto tem gerado muita apreensão nos médicos, mas eu digoque nós vamos evoluir para sermos assalariados no sistema de saúde. Dificilmente vamos conseguir ganhar em cima de procedimentos como hoje. Novos modelos de remuneração são desafios. O que já é consenso é que o atual modelo não serve.
O trabalho do IBSP
É uma instituição que foca na educação e segurança do paciente como portal de conteúdo livre e aberto. Temos quatro atividades com eventos nacionais, cursos in company e desenvolvemos assessoria. O IBSP tem ainda um projeto colaborativo que envolve, por exemplo, a prevenção do tromboembolismo venoso. São vários hospitais participantes que têm que desenvolver seus indicadores de prevenção com performance de 100%. No final de outubro de 2018, os envolvidos irão elaborar documento, para mostrar o que houve de aprendizado e de barreiras na experiência. Temos este mesmo sistema relacionado ao uso racional de antibióticos. Hoje somos ligados ao movimento internacional PatientSafetyMovement, iniciado nos EUA, que tem como objetivo reduzir danos passíveis de prevenção até 2020. Já são 43 países participantes.
Saiba mais em: www.segurancadopaciente.com.br