Projeto cria multa para abusos cometidos por flanelinhas
Proposta quer penalizar financeira e administrativamente guardadores de carros que praticarem coação e ameaças a motoristas nas ruas
A Câmara Municipal deve analisar em breve proposição que pretende tornar infração administrativa práticas de coação e de ameaças adotadas por flanelinhas ou guardadores de veículos autônomos nas ruas de Juiz de Fora. Tal objetivo é alvo central de um projeto de lei assinado pelo vereador Júlio Obama Jr. (PHS) que prevê multa de R$ 1.500 para pessoas flagradas agindo de forma coercitiva para convencer motoristas a aceitarem e remunerarem a atividade. O valor da sanção pode dobrar caso a mesma pessoa for apanhada novamente no prazo de cinco anos. O texto considera ainda como ilícito administrativo ocorrências em que os flanelinhas, mesmo que de forma velada, sugiram “qualquer espécie de preço tabelado ou que não fique à livre escolha do motorista”.
“O que vemos na prática é a formação de verdadeiras quadrilhas, que cometem extorsões, obrigando motoristas a pagarem valores excessivos para estacionar seus veículos em via pública. O presente projeto visa a coibir tais atividades (…), desestimulando tais práticas e colaborando para a sensação de segurança urbana da qual a cidade tanto necessita”, afirma a justificativa do texto que iniciou tramitação em julho. Atualmente, a proposição está sob análise das comissões temáticas do Poder Legislativo, que emitirá seus devidos pareceres antes de a proposta ser debatida pelos vereadores em plenário.
Constrangimento
Relatos de situações de constrangimento provocados pela atuação de alguns guardadores de veículos que atuam nas ruas de Juiz de Fora não são raros. Em janeiro deste ano, por exemplo, uma mulher teve o pneu de seu carro supostamente rasgado por um flanelinha no Bairro Aeroporto, após ter se recusado a pagar R$ 20 a ele. Na ocasião, a vítima preferiu não registrar boletim de ocorrência. Outras denúncias, no entanto, motivam atuações de forças de segurança pública. Em um destes casos, em junho, ação da Polícia Militar (PM) em ruas dos bairros Alto dos Passos e São Mateus, na Zona Sul, resultou na detenção de 12 flanelinhas. As operações são feitas em parceria com a Guarda Municipal e têm se tornado rotineiras.
“As ações de coação à prática de ‘flanelagem’ foram feitas em todos os finais de semana a partir do mês de junho de 2017, em diversos locais da cidade. Geralmente ocorrem aos finais de semana, e a programação é de que os trabalhos continuem ao longo do ano”, afirma a comandante da Guarda Municipal, Emilce de Castro, por meio da Secretaria de Segurança Urbana e Cidadania (Sesuc). A pasta afirma que a Guarda já realizava ações semelhantes mesmo antes de a publicação de portaria que designou 90% do efetivo da corporação para atuar na fiscalização do trânsito de Juiz de Fora, no início do mês passado.
A comandante ressalta ainda que as ações são feitas em vários pontos da cidade e podem ser motivadas por denúncias de cidadãos. “A população pode realizar o chamado de vistoria da Guarda em locais detectados como áreas de ‘flanelagem’. Mas é importante destacar que o cidadão é a vítima e, por isso, deve nos acompanhar até a Delegacia de Plantão para os devidos registros. É importante a denúncia dos cidadãos.”
O número de reclamação que chega à corporação, no entanto, não é considerado significativo. “A Guarda Municipal recebe um número pequeno de reclamações mensais, pois os cidadãos não se disponibilizam para fazer a ligação e acompanhar o trâmite da reivindicação até a delegacia. É comum vermos reclamações em redes sociais porém as mesmas reclamações não chegam a ser registradas pelos mesmos indivíduos nos órgãos competentes.”
Ações na cidade são acompanhadas de abordagem social
A comandante da Guarda Municipal, Emilce de Castro, destaca que as ações também buscam oferecer oportunidades e esclarecimentos aos guardadores de carro. “Junto à equipe da SDS (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social) é feito a abordagem social, em que, através do diálogo, a equipe tenta encaminhar os mesmos para os serviços de apoio da Prefeitura de Juiz de Fora.” Entre as possibilidades sinalizadas estão a oportunidade para a realização de cursos, de estadia, de capacitação e de auxílio na busca por emprego.
Advogado da Conectas Direitos Humanos, organização não governamental internacional sem fins lucrativos, Henrique Apolinário entende que soluções que sugiram novas punições aos cidadãos que exercem a atividade de flanelinha estão distantes de ser o ideal. “Em muitos do problemas observados no Brasil, a busca por uma solução vem apenas da busca por punição. Atualmente, se um flanelinha comete algo grave, como uma coação, já é considerado um crime. Do meu ponto de vista, a criação de novas figuras para punir administrativamente é uma forma de alguns parlamentares tentarem mostrar serviço. É uma medida simbólica, apenas”, considera.
Precisamos debater se vamos ou não regularizar a prática, até para podermos observar aspectos sociais necessários para dar dignidade a estas pessoas” (Júlio Obama Jr, vereador e autor da proposta)
Para ele, é necessário que a sociedade e o Poder Público tentem enxergar a situação com outros olhos. “Vemos atualmente que o superencarceramento não resolve os problemas. Muitos cidadãos se propõem a prestar a atividade de forma séria. A princípio, a grande maioria deles está tentando trabalhar honestamente. Há exceções como em todas as profissões. Este tipo de punição pode apenas piorar a condição de uma pessoa que, na maioria das vezes, já se encontra em situação difícil.”
No entendimento do advogado, o Poder Público precisa buscar ferramentas de diálogo e de inserção dos segmentos que hoje se encontram em mercados informais, que, muitas vezes, atendem a demandas existentes nas cidades. “É preciso investir nestas pessoas, seja por meio de cadastro ou de campanhas de conscientização, para que elas possam se profissionalizar. A sociedade se utiliza de todos aqueles que estão no mercado informal. É o caso de camelôs e flanelinhas, por exemplo. Estas atividades existem pois há uma demanda para este tipo de serviço. Porém, quando há um crescimento da oferta, a sociedade tende a escolher um caminho que passa por uma espécie de criminalização de determinada atividade. Isto acaba afastando ainda mais estas pessoas, que são colocadas cada vez mais à margem”, conclui.
Iniciativa teve baixa adesão
Ações para minimizar possíveis problemas causados por flanelinhas já haviam sido discutidas durante o primeiro mandato do prefeito Bruno Siqueira (PMDB). Em 2014, a Prefeitura chegou a fazer um diagnóstico dos guardadores que atuam na Zona Sul da cidade, com o objetivo de conhecê-los e traçar um plano de ação para tirá-los das ruas, inclusive com oportunidades de qualificação profissional. Mas o plano teve baixa adesão na época, e, dos 38 guardadores entrevistados, apenas dois aceitaram encaminhamento a projetos sociais.
A maioria dos guardadores identificados na ocasião era formada por autônomos de baixa escolaridade, que não exerciam outra atividade remunerada e desconheciam os benefícios sociais. Vinte e dois 22 afirmaram fazer uso de drogas, sendo que 15 informaram consumo de crack. Já o consumo de álcool foi informado por 23 dos ouvidos. Os dados serviram para traçar diretrizes multidisciplinares para oferecer alternativas aos flanelinhas, até a efetivação das primeiras vagas de Área Azul noturna, implantadas em setembro de 2015 no Alto dos Passos, na Zona Sul da cidade. A iniciativa foi considerada uma ferramenta para inibir a atividade na região. Hoje, de acordo com a Secretaria de Atividades Urbanas (SAU), a cidade não possui cadastro de flanelinhas autorizados a oferecer os serviços nas ruas da cidade.
‘Guardadores raramente têm condições de pagar multa’
Diante da proposta em tramitação na Cãmara, cabe lembrar que as práticas de “coação” e “ameaça” são tipificadas como crime no artigo 146 do Código Penal. O texto da legislação de âmbito federal prevê pena de detenção de três meses a um ano ou aplicação de multa para quem “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.”
Para o advogado criminalista com atuação no Rio Grande do Sul, professor de Direito Penal e presidente do International Center for Criminal Studies (ICCS), Evinis Talon, não há conflito entre o projeto de lei protocolado por Obama, que tem caráter administrativo, e o Código Penal, que responsabiliza criminalmente. “É possível que alguém seja punido administrativamente (com multa, advertência e suspensão, por exemplo) e criminalmente (com privação de liberdade ou prestação de serviços à comunidade) pela prática do mesmo fato. Um grande exemplo disso é a esfera ambiental. De qualquer forma, os abusos (ameaça e extorsão, por exemplo) já são punidos pelo Direito Penal, que é muito mais gravoso que a punição administrativa.”
No entanto, na opinião de Talon, o projeto de lei apresentado por Júlio Obama Jr. é de difícil aplicação prática. “Tem apenas um caráter simbólico. Os guardadores raramente possuem condições de pagar a multa e, se o valor for inscrito em dívida ativa, o Município dificilmente encontrará bens penhoráveis.” Do ponto de vista do especialista, a proposição traz uma multa desproporcional e prevê condutas que já são punidas de forma mais rigorosa e efetiva na seara criminal.
“Assim, enfrentará questionamentos sobre a competência do Município para legislar sobre esse tema, podendo, depois de aprovado, ser (a lei) considerada inconstitucional. Se aprovada e mantida em vigor, poderá não produzir resultados, porque dificilmente as multas serão pagas por essa parcela da população que apenas se encontra nessa atividade por falta de opção”, considera o advogado criminalista. Por fim, como forma de combater possíveis abusos, ele sugere que “o ideal seria regulamentar as regiões que permitem essa atividade – facilitando a fiscalização – e incentivar a população a denunciar eventuais abusos às autoridades policiais.”
Atividade de flanelinha é regulamentada por lei
A atividade de flanelinha é regulamentada por legislação federal promulgada há 42 anos, de 23 de setembro de 1975. O texto prevê que o “exercício da profissão de guardador e lavador autônomo de veículos automotores, em todo o território nacional, depende de registro na Delegacia Regional do Trabalho Competente”. Para o registro, é necessário a apresentação de documento de identidade, atestado de bons antecedentes, certidão negativa dos cartórios criminais, comprovante de obrigações eleitorais e de quitação do serviço militar. No entanto, o advogado criminalista Evinis Talon explica que, apesar da exigência, o desempenho da função sem o registro não é considerada infração penal, de acordo com entendimento recente manifestado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
“Em 2016, ao julgar o habeas corpus nº 309.958 (que teve origem em Minas Gerais), o STJ decidiu que não é infração penal a conduta do guardador de veículos que trabalha sem o registro. Aliás, os ministros mencionaram que essa atividade não exige conhecimentos técnicos especializados, de modo que a ausência de registro não causa prejuízos à sociedade”, afirma Talon. O advogado defende ainda a necessidade de atualização da legislação de forma que mais trabalhadores se regularizem. “Utilizando essa e outras decisões como parâmetro, precisamos questionar se é necessário exigir tantos requisitos, como a prova de estar em dia com as obrigações eleitorais e a prova da quitação do serviço militar.”
Punição a abusos
Independentemente de o fato da ausência do registro não resultar em infração penal, Talon ressalta que a prática de abusos é punível esteja o flanelinha registrado ou não. “Dependendo do caso concreto, ele poderá ser punido criminalmente por ameaça (detenção de 1 a 6 meses ou multa), constrangimento ilegal (detenção de 3 meses a 1 ano ou multa), extorsão (reclusão de 4 a 10 anos e multa), dano (detenção de 1 a 6 meses ou multa), injúria (detenção de 1 a 6 meses ou multa), lesão corporal (detenção de 3 meses a 1 ano) ou vias de fato (empurrar alguém, por exemplo – prisão simples de 15 dias a 3 meses ou multa)”, destaca o especialista.
Legislativos criam projetos país afora
Esforços legislativos para coibir abusos e até mesmo a prática da atividade de flanelinha não são raras nos poderes legislativos municipais país afora. No ano passado, o então vereador em Belo Horizonte, Joel Moreira (PMDB) apresentou uma proposta que pretendia inviabilizar a prática do ponto de vista administrativo na capital mineira. A proposição determinava à Prefeitura a responsabilidade pela fiscalização das atividades de guardador e vigia de veículos automotores e aplicação de multa de até R$ 300 para aqueles que forem flagrados exercendo tais atividades.
À época, o parlamentar belo-horizontino justificou a sugestão citando o crescimento do número de casos de extorsões, ameaças e agressões envolvendo os flanelinhas na capital. No primeiro semestre de 2016, a estimativas apontavam que BH tinha 1.268 guardadores de carros registrados e até cinco mil clandestinos. Como Joel não foi reeleito, o dispositivo acabou arquivado ao final da legislatura (2013/2016).
Outro exemplo aconteceu em Salvador. Em 2013, após a aprovação da Câmara de dispositivo assinado pelo então vereador Paulo Câmara (PSDB), a Prefeitura sancionou projeto de lei que torna “proibido o exercício irregular da atividade ou profissão de guardadores de veículos, ‘flanelinhas’ ou semelhantes” nas vias públicas da capital baiana. Este ano, o município começou a ordenar a atividade dos guardadores de carro informais por meio da Secretaria de Promoção Social e Combate à Pobreza (Semps). A ação tem cunho social. O intuito é o de cadastrar os flanelinhas que exercerão a atividade em área predeterminada, utilizando colete e crachá de identificação e com os preços pelo atendimento aos usuários padronizados. Por outro lado, eles deverão contribuir para a limpeza dos locais onde atuam, além de serem parceiros do Município e da Polícia Militar, denunciando situações de consumo de drogas nas vias e a existência de crianças em situação de risco.
Proposta idêntica à de SP
Este ano, em um movimento coordenado ou não, vários vereadores de cidades distintas deram entrada em projetos de lei que pretendem tornar ilícitos administrativos práticas de coação e ameaças cometidas por flanelinhas. Assim, além de Juiz de Fora, discussões similares estão em tramitação em São Paulo, Limeira, Osasco e Barueri, por exemplo. Alguns textos, no entanto, vão além da similaridade. Quando comparadas, as propostas apresentadas nas câmaras de Juiz de Fora e de São Paulo são basicamente idênticas tanto o corpo da proposição em si, quanto a justificativa anexadas aos textos parlamentares são espelhados. A única diferença entre uma redação e outra é a troca da expressão “Secretaria de Transporte Municipal” por “Settra”, no caso da discussão juiz-forana. Assinada pelo polêmico vereador paulistano Fernando Holiday (DEM), alçado ao cargo legislativo por sua liderança no Movimento Brasil Livre (MBL), a proposição que é debatida na capital de São Paulo iniciou tramitação antes do texto protocolado por Júlio Obama Jr.
Da mesma forma, apesar de a Tribuna não ter tido acesso ao projeto que tramita em Osasco, a justificativa do projeto de lei apresentado pelo vereador Tinha di Ferreira (PTB) e veiculada pela imprensa paulista é exatamente a mesma que também integra as proposições de Fernando Holiday e Obama, com a replicação do argumento de que “o que vemos na prática é a formação de verdadeiras quadrilhas, que cometem extorsões, obrigando motoristas a pagarem para estacionar seu veiculo em via pública.”
“Inspiração”
Sobre a similaridade das propostas, Obama afirma que seu gabinete tem se debruçado sobre pontos preocupantes em nossa cidade e feito pesquisas em legislações que possam ser adaptadas à realidade de Juiz de Fora. “Não deixa de ser uma inspiração. Fizemos a pesquisa e apresentamos o projeto que ainda será discutido.” Para o parlamentar, o principal intuito da proposição é fomentar uma discussão sobre o tema.
“Não temos cadastro de flanelinhas na cidade. Isto deveria existir, pois isto não deixa de ser uma atividade. O projeto vem exatamente para fomentar esta discussão. Precisamos debater se vamos ou não regularizar a prática, até para podermos observar aspectos sociais necessários para dar dignidade a estas pessoas. A partir do debate, podemos melhorar o texto, fazer emendas ou mesmo retirar a proposição. Porém, o que não podemos deixar de fazer é um debate sobre o assunto, pois penso que um vereador precisa ter uma leitura das ruas. Percebemos que alguns usam da atividade para intimidar de forma criminosa. Juiz de Fora sempre foi uma cidade ordeira. Hoje, percebemos um certo caos.”