Identidade fragmentada


Por RENATA DELAGE

29/07/2012 às 07h00

Impor um significado à palavra "perda" não é tarefa fácil. Às denotações que apontam para a privação de convívio com algo ou alguém – seja por extravio ou destruição -, somam-se termos como morte, aniquilamento, ruína. Quando o assunto é futuro, lá está ela, pronta para se apoiar nas justificativas do progresso. Afetiva por excelência, é impossível não atrelá-la à memória e ao saudosismo. Explorando as possibilidades da volátil palavra "perda", a Tribuna propõe uma indagação a pessoas engajadas na preservação dos bens arquitetônicos e culturais da cidade. "Qual foi a maior perda do patrimônio cultural de Juiz de Fora?" Pontos concretos ou não, os bens citados abrem caminho para discussões sobre a memória afetiva dos juiz-foranos e os mecanismos de preservação.

Para o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Júlio César Sampaio, que já atuou na UFJF, o maior patrimônio perdido se vincula aos tempos áureos da então "Manchester Mineira" (nome conferido à cidade em função da proliferação de fábricas com aspectos semelhantes aos padrões arquitetônicos britânicos), cujo auge ocorreu entre as décadas de 1880 e 1930. "Dentro do universo do patrimônio industrial de Juiz de Fora, destaco a Fábrica dos Ingleses, posteriormente Companhia Têxtil Ferreira Guimarães, que se constitui em um exemplar paradigmático da trajetória de apogeu, crise, desprezo e critérios de proteção polêmicos", elege Sampaio.

Fundado em 1883 e considerado a primeira fábrica de grande porte da cidade, o complexo industrial passou por algumas modificações e expansões até encerrar as atividades em meados da década de 1980. Após anos de abandono, foi parcialmente demolido no final da década de 1990. As partes remanescentes do conjunto original – um galpão, uma unidade residencial e uma chaminé do início do século XX -, foram tombadas em 2003 e 2004. O terreno resultante da demolição foi destinado para a construção de um complexo de uso misto. "Poucos exemplares tradicionais conseguiram sobreviver a descasos, demolições e reformas que comprometeram significativamente a autenticidade e integridade dos aspectos arquitetônicos originais. Deste grupo, restam apenas 11 prédios que se encontram parcialmente protegidos pelas autoridades locais. Somente um deles possui proteção integral", observa.

Outra grande perda essencialmente ligada à formação das identidades da cidade é sugerida pelo procurador do município e membro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural de Juiz de Fora (Comppac), Wilson Jabour Júnior. "A ‘Fazenda Velha’, ou ‘Fazenda da Outra-Banda’ ou ainda ‘Fazenda do Juiz de Fora’, como é conhecido o vetusto casarão, então situado no Bairro Vitorino Braga, nas imediações da atual Avenida Garibaldi Campinhos, é nossa maior perda", avalia. Demolida em 1946, a sede, conforme destaca o procurador, era, nas palavras do professor e jornalista Lindolfo Gomes "a mais antiga e a mais histórica" das habitações juiz-foranas, "ponto de partida de toda a história da formação da cidade". "Apesar dos esforços de Gomes junto à administração municipal e ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), não foi possível preservar aquele importante monumento", lamenta.

  

Lacunas na preservação

Há 14 anos – completados no dia 27 deste mês -, entrou em vigor a lei 9327/98, que dispõe sobre a transferência do potencial construtivo de imóveis tombados. "Lamento por todas as perdas do patrimônio arquitetônico ocorridas na cidade, principalmente, a partir de 27 de julho de 1998", sentencia o arquiteto e artista gráfico, professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFJF, Jorge Arbach. "Meu lamento ocorre pela ineficácia em gerenciar a aplicação dessa lei, um mecanismo legal eficaz de compensação ao proprietário pelo tombamento de seu imóvel. Até hoje, não se definiu qual setor administrativo da municipalidade é responsável pelo seu gerenciamento", aponta.

Arbach argumenta que em cidades com legislação similar, como Belo Horizonte e Curitiba, os resultados são satisfatórios entre os agentes diretamente envolvidos, ou seja, proprietários e construtoras. "Em Juiz de Fora, é perceptível o crescente inconformismo do proprietário pela preservação do seu imóvel tombado. O conhecimento e a correta utilização dessa lei permitiria aplacar a tensão que se avoluma entre a expansão urbana e a preservação da história coletiva", explica.

Júlio César Sampaio engrossa o coro em favor de mecanismos de preservação mais eficazes. "O que aconteceu na Fábrica dos Ingleses demanda uma reflexão do modelo de desenvolvimento da cidade e das respectivas políticas urbanas em que a questão da conservação poderia desempenhar um importante papel." O professor destaca ainda um modelo, passível de discussões, representativo na cidade, que privilegia a proteção de fachadas e coberturas na política de proteção do patrimônio cultural, o chamado "fachadismo". "O emprego deste critério equivale a cerca de 70% a 80% dos tombamentos efetuados em Juiz de Fora", explica. "Em muitos casos, ignoraram interiores e outros aspectos arquitetônicos relevantes como nos casos de parte da antiga sede da Prefeitura, a casa da Família Colluci, o Castelinho da Família Bracher, a Capela de Santa Terezinha, a Igreja da Glória, o Instituto Granbery, o Hotel São Luiz, entre vários outros", cita.

Ainda se encaixam nesta situação o Curtume Krambeck, a Companhia Fiação e Tecelagem Santa Cruz, os galpões da antiga garagem da Companhia Energética de Minas Gerais/Cemig e a Companhia Têxtil Ferreira Guimarães. As exceções ficam por conta das conversões da antiga fábrica Bernardo Mascarenhas no centro cultural mantido pela Prefeitura e na transformação da Usina de Marmelos em um museu temático da história da energia elétrica, sob responsabilidade da Universidade Federal de Juiz de Fora através de um convênio firmado com a Cemig.

 

Conjunto comprometido

A resposta do coordenador do Curso de Arquitetura e Urbanismo do CES, Paulo César Lourenço, quando indagado sobre a maior perda cultural da cidade, não retém dúvidas: "o antigo complexo do colégio Stella Matutina, com sua capela, por representar um conjunto institucional emblemático, representativo da cultura e da memória de Juiz de Fora." Contudo, Lourenço ressalta que mais significativo que as perdas específicas, referentes a um ou outro prédio, é o somatório de perdas do patrimônio. "Ele vem se perdendo constantemente com a verticalização da cidade, o que acarreta em uma descaracterização. O brasileiro se encanta com cidades da Europa ou com centros históricos de determinados municípios do país, em função de sua uniformidade arquitetônica. O conjunto faz o patrimônio", reforça.

Para a professora de arquitetura e urbanismo da UFJF e do CES, presidente da Oscip Programa de Estudos e Revitalização da Memória Arquitetônica e Artística (Permear), Milena Andreola, a maior perda para o patrimônio de Juiz de Fora é a fragmentação da "própria identidade, da imagem da cidade e da qualidade de vida". "Isso vem à tona quando pensamos na demolição de algumas casas na Avenida Rio Branco, como a ‘Marajoara’, na esquina com a Rua Delfim Moreira, ou o ‘Chalé’ que existia próximo ao Edifício Top Center, que ficou na minha memória como ‘Casa de chocolate’", diz.

Indo além das questões relacionadas à história e à memória afetiva, a arquiteta encara a preservação do patrimônio como uma garantia da qualidade de vida. "A cada casa demolida, uma unidade residencial deixa de existir para abrir espaço para outras 40. Nossa infraestrutura urbana não suporta mais isso – aumentam a demanda por água, esgoto, luz, telefone e a quantidade de carros. E com certeza aumenta a demanda da comunidade pela sua identidade e sua memória, que vão se perdendo a cada edifício demolido." 

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