Minas bilíngue, surdos monolíngues: a conta não fecha

“Se bilinguismo é futuro, que esse futuro não venha com pessoas deixadas para trás”


Por Gabriel Pigozzo Tanus Cherp Martins, tradutor intérprete de Libras da UFJF

27/11/2025 às 07h00

Quando o governo anunciou recentemente, com pompa e circunstância, o projeto Minas Bilíngue, por um breve instante pensei e acreditei que poderíamos assistir a um daqueles raros momentos em que a educação pública realmente dá um salto civilizatório, emancipatório e inclusivo. Afinal, investir em línguas, isso mesmo, línguas — inglês, espanhol, mandarim, italiano, francês e alemão — e promover interculturalidade em plena rede estadual, não é uma ação que esperávamos. Criar escolas bilíngues, centros de estudo e até programas de intercâmbio internacional a partir de 2026? É ver o futuro bater à porta, vestido com vocabulário rebuscado, passaporte carimbado e jovens realizados profissionalmente e pessoalmente.

E sim, para sermos justos: a iniciativa é, fantástica. Um avanço significativo e real para ampliar horizontes, abrir oportunidades e preparar jovens para um mundo que, gostemos ou não, já é globalizado e competitivo. É desenvolvimento, é crescimento, é perspectiva. É tudo aquilo que os discursos políticos (e as nossas legislações) prometem e quase nunca entregam.
Mas — e aqui entra o “mas” que sempre estraga a grandiosidade e a festividade dessas ações “políticas” — algo muito significativo ficou de fora desse universo multilíngue tão cuidadosamente organizado e pensado para Minas Gerais. Algo tão óbvio, tão urgente, tão necessário que a sua ausência não pode ser chamada de falha: tem que ser chamada pelo nome certo — negligência. Onde está a Libras?

Sim, a Língua Brasileira de Sinais. Aquela mesma, reconhecida por lei, usada por uma comunidade inteira que insiste, heroicamente, em existir e resistir mesmo quando o Estado insiste em ignorá-la. E agora, oficialmente.

Se o projeto se propõe a promover bilinguismo e educação intercultural, é no mínimo curioso — para não dizer contraditório — que não inclua justamente a língua que garante acesso, identidade e cultura para crianças e jovens surdos, que estão matriculados e frequentam as escolas desta rede. Porque, convenhamos, de que adianta ensinar mandarim quando uma parte da própria população sequer tem assegurada a comunicação plena dentro da sua própria escola?

E por onde andam os especialistas, os pesquisadores, os debatedores profissionais da educação de surdos? Aqueles que adoram discutir se “Libras deve entrar aqui ou ali”, como se a vida escolar dos jovens surdos fosse um quebra-cabeça teórico e não uma urgência pedagógica. Eles se reúnem, debatem, produzem artigos, travam batalhas acadêmicas… mas, ironicamente, muito pouco disso se traduz em políticas públicas reais. Talvez falte menos teoria e mais vontade política; talvez falte parar de se digladiar entre si e começar a brigar pelo que realmente importa. Uma educação bilíngue de/para/com surdos.

Enquanto isso, energia e orçamento são direcionados para projetos lindos, polidos e instagramáveis — alguns, convenhamos, com impacto duvidoso, quiçá …. — enquanto a Libras continua sendo tratada como um detalhe, um apêndice, um “quem sabe depois”. É quase como se o governo dissesse: “Bilinguismo, sim! Mas só para quem já ouve bem o bastante para agradecer.”
E aqui vai meu recado ao governo: parabéns pelo Minas Bilíngue, de verdade. Mas falta coragem para dar o passo mais importante — oportunizar uma educação bilíngue de, para e com surdos.

Não é só uma questão de incluir mais uma língua no rol das seis contempladas. É uma questão de garantir equidade, acesso, inclusão e dignidade. Qual é exatamente a dificuldade?
Porque promover interculturalidade é lindo. Mas excluir a cultura surda é, no mínimo, incoerente.
Se bilinguismo é futuro, que esse futuro não venha com pessoas deixadas para trás.

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