Aos homens de boa vontade
“Tomara que Deus queira/Oxalá, tomara/Haja uma maneira/Deste meu Brasil melhorar.” Gilberto Gil.
O misticismo, muitas vezes, serve para encobrir e justificar a incompetência dos políticos que transferem para a transcendência ou para as forças sobrenaturais a responsabilidade de sua inoperância.
“Não fez porque Deus não quis. Quando Ele quiser, será feito. Ele é quem sabe a hora.”
Já está na hora de pararmos de entregar para Deus tudo que é obrigação dos políticos, que só faltam vender a alma para conquistar os mandatos e que, ao conquistá-los, só fazem culpar os antecessores e a falta de recursos, numa prova insofismável de suas incapacidades para exercer cargos para os quais se elegeram. Esses não são homens de boa vontade.
Quem sabe faz a hora, mas a exortação “glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade” tem sua alusão alterada de acordo com o momento histórico e a sua localização.
Na nossa realidade atual, homens de boa vontade serão todos aqueles engajados na luta pelo resgate social do negro em nossa sociedade. Não dá mais para adiarmos esta questão. Há mais de 400 anos, os negros vivem e constituem a maioria da população brasileira e nunca foram incluídos como cidadãos ativos dela.
Sempre viveram marginalizados, e sua exclusão se fez de forma tão camuflada que não existiu nenhuma lei que delimitasse seu raio de ação, como aconteceu noutros países escravocratas. Então, ele não teve uma lei contra a qual lutar. Isso só agravou a situação, dificultando sua conscientização e gerando o processo do “salve-se quem puder” que faz com que o negro que consegue ultrapassar as imensas barreiras e superar os humilhantes obstáculos adote o discurso do branco e passe a defender que basta querer, que qualquer um pode conseguir e que tudo já está bem mais fácil. Quase como se estivesse pedindo desculpas aos brancos por estarem tocando no assunto. No Brasil, só não tivemos problemas mais graves porque aqui os negros sempre reconheceram seu lugar; e de um modo geral eram todos negros de alma branca.
A luta para que a desigualdade seja superada significa atribuir aos negros os mesmos deveres, mas, principalmente, os mesmos direitos atribuídos aos homens brancos. E não vale o contra-argumento de que existe muito pobre branco também. Esse é o argumento dos acomodados que não querem mexer em nada, por medo de perderem seus privilégios.
O dia em que acabar o apartheid dos negros acabará também o dos pobres, o dos indígenas, enfim, o de todos os excluídos, porque eles são os mais injustiçados na escala social.
Todos ganharão com sua inclusão, principalmente a classe média, que sonha se tornar classe dominante, fato que jamais acontecerá. A ascensão do negro fortalecerá a classe média, que ganhará robustez para pressionar as 200 famílias bilionárias responsáveis pela concentração de renda a partilhar com os cinco milhões mais pobres para diminuir a diferença abissal entre os extremos da pirâmide social brasileira.
Aí todos os outros grandes problemas como educação, saúde, segurança, saneamento básico, habitação e mobilidade se resolverão por acréscimo.
Então, é preciso que nos indignemos com a questão da desigualdade e que ela se torne uma questão de honra para todos nós. Não dá mais para adiar. São 400 anos de procrastinação.
Se quisermos ter paz como homens de boa vontade, precisamos incluir o negro em nossa sociedade, sem nenhum favor ou concessão.
Aliás, sem muito alarde também, porque esta é uma questão vergonhosa para nós.
Vamos resolvê-la logo. Até para podermos almejar um feliz Natal para todos os brasileiros.