Filosofia numa hora dessas?


Por José Ricardo Junqueira, jornalista, ex-secretário de Cultura e Turismo de Cataguases

20/06/2019 às 06h59

Imagine um grupo de pessoas assentando-se em círculo e pondo-se a dialogar, evitando discussões ou debates, abandonando convicções e julgamentos preconcebidos e deixando as ideias fluírem livremente. Nesse exercício, cada um procura construir seus juízos, respeitando os já partilhados pelo grupo, sendo o mais transparente e honesto possível. O objetivo é abrir uma “clareira” de entendimento para que algo novo surja estimulado pela justaposição das ideias, que, por não disputarem entre si, podem se tornar deveras reveladoras. Esse procedimento é conhecido como Diálogo de Bohm. Agora compare essa iniciativa com os debates virtuais travados nas redes sociais (o tête-à-tête saiu de moda), marcados pelo enfrentamento, pela radicalização e, via de regra, pelo ódio. Não há entendimento, e o que se vê é o individualismo e a banalização e/ou relativização da verdade.

O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) nos instrui que “poeticamente o homem habita” e que só assim ele pode dar sentido à sua existência. Mas esse habitar, segundo Heidegger, não é uma opção, mas uma imposição, e dela não há como fugir. Antonin Artaud (1896-1948), dramaturgo francês idealizador do Teatro da Crueldade, não se refere diretamente a Heidegger, mas o corrobora exemplarmente em 1935: “Todas as nossas ideias sobre a vida devem ser retomadas numa época em que nada mais adere à vida. E essa penosa cis&a tilde;o é a causa de as coisas se vingarem, e a poesia que não está mais em nós e que não conseguimos mais encontrar nas coisas reaparece de repente pelo lado mau da vida; nunca se viram tantos crimes, cuja gratuita estranheza só se explica pela nossa impotência para possuir a vida”. Não é exatamente o que estamos vendo de forma avassaladora nos dias atuais?

Nessa civilização pós-tudo, conectar e desconectar rapidamente é nosso paradigma de relacionamento. O mundo parece caber inteiro numa tela de celular. Porém, outro filósofo, o austríaco Martin Buber (1878-1965), nos revela um conhecimento profundo sobre as relações Eu-Tu que, aplicado ao mundo de hoje, pode nos alertar – atenção! – sobre a tragédia para a qual estamos caminhando a passos largos. Diz Buber: “A palavra Eu não existe sozinha. Para o Eu existir, precisa-se do outro polo desta palavra-princípio: precisa-se de um Tu ou um Isso. É no entre dos relacionamentos que o Ser se manifesta e conhece o mundo. Para isso acontecer de fato, deve haver totalidade: a participação e a presença total no relacionamento revelam a totalidade do Ser e a ética possível na manifestação do Ser – e nessa totalidade há a infinita questão de Deus”.

Diz mais: “A realidade humana é a via de acesso a Deus, e a ética é o único meio pelo qual Deus se comunica com a humanidade. O caminho da ética acontece, novamente, no entre do relacionamento humano. Deus, enquanto Tu Eterno, manifesta-se e comunica-se com a pessoa por meio da ética. Realidade humana e ética se complementam, e a ética é a condição de toda a dimensão religiosa. As grandes obras, ideias e experiências possuem sua origem no contato estabelecido pelo si-mesmo com o Ser, que está face a face. Não há, na imanência do mu ndo – atenção! – nenhuma unidade em si fechada”. Virtualizados, distantes uns dos outros, não estaremos de fato caminhando inexoravelmente para o abismo?

Convido o leitor à reflexão. Mas alguém haverá de perguntar: “Filosofia numa hora dessas?”. “Filosofar para quê?”. O presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Educação devem saber “para que não filosofar”, uma vez que estão banindo a disciplina das escolas. Mesmo eles, com sua mediocridade intelectual, sabem que só se coloca canga e cabresto em gente ignorante, incapaz de pensar. Deve ser por isso que não estamos conseguindo nos opor com energia à gravidade dos fatos que vêm ocorrendo no Brasil e que se constituem verdadeiros c rimes de lesa-pátria; deve ser por isso que não estamos conseguindo nos manifestar à altura e ocupar espaços num contexto verdadeiramente democrático, no qual, por definição, o povo exerce a soberania. Filosofia significa “amor à sabedoria”, à existência, ao conhecimento, à verdade e aos valores morais e éticos, à mente e à linguagem, portanto, à cidadania. Reage, Brasil!

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