Tragédia da invisibilidade
Qual a comoção que o extermínio de uma vida humana te causa? Já parou para pensar? Quando nascemos, nove meses de gestação, preparo da escolha de colocar uma vida no mundo, mais uma? Não, uma vida especial que você ama e todos ao redor amam.
O que acontece com esses mesmos seres humanos que, quando uma vida se vai em uma execução, de repente ela não tem mais valor?
O povo negro em nosso país vive a tragédia da invisibilidade. Nossas mortes são naturalizadas, não comovem. Não somos gente? Não tivemos o mesmo processo de gestação da vida? Nossa alma não é tão etérea quanto a sua?
Passamos pelo infame julgamento se tínhamos ou não alma, já fomos ultrajados por esse questionamento “cristão”. Séc. XXI, e a sentença dada na prática é de que não temos humanidade, afinal, seres humanos deveriam causar comoção quando suas vidas lhes são tiradas.
Ao final deste texto, te convido a um exercício: conte um tiro, dois tiros… Vá até 80. Será tempo suficiente para fazer reflexões, dará inclusive para saber se foi engano. Durante a contagem, pense na família do Evaldo, na dos jovens mortos; pense neles, nas mulheres negras mortas. Imagine seus nascimentos, suas primeiras palavras, seus primeiros passos, aquela pureza peralta…
Em seguida, lide com o fato que, de acordo com o Ipea, a cada 23 minutos, morre um jovem negro no país. Nos últimos 11 anos, foram 553 mil. Volte seu pensamento para a gestação da vida… Se isso não cria um nó no seu peito, não é com você que desejo falar. Se te causa, vamos juntos agir para que o corpo negro, de mercadoria barata, volte a ser visto como humano, igual a você.
Nós estamos sendo exterminados pelo Estado, que não garante aparelhos ou políticas públicas mínimas para a gente pobre: escola, saúde, emprego. Mais fácil criminalizar a pobreza. O pacote anticrime do ministro da Justiça, na prática, autoriza a pena de morte no país: atira primeiro, pergunta depois, e tudo bem, caro policial, trabalhador, irmão. Eles te aliviam da sentença do Estado, mas e a sua sentença? Aquela que você se dá ao fim de um dia estressante de trabalho, ao encontrar sua família também preta, também pobre. Te ensinam que os alvos, os suspeitos, são seus iguais? Basta que portem um guarda-chuva, uma furadeira, um vidro de Pinho Sol, um saco de balas, ou mesmo que estejam de uniforme escolar na quebrada, mas a quebrada é onde a gente mora…
Já percebeu como a face negra é confundida? Rola um tempinho para guardar nossos nomes. Um dia, você pode estar sem farda. Um dia você pode estar num carro popular levando sua família para comemorar mais um nascimento e ser fuzilado com 80 tiros, por engano. Nessa falta de política pública, “também morre quem atira”. Um país racista que insiste em transformar a dor, a segregação espacial e política em “mimimi”, como se 300 anos de escravidão fossem coisa inventada, “questão de opinião”.
Vivemos o conto da democracia racial. Gentes que se olham no espelho sobre a luz do racismo estrutural e se enxergam quase brancos. A vida fatalmente tem demonstrado: somos alvos! Volte lá em cima, na criança peralta, acrescente um alvo nas suas costinhas, sua cabecinha.
Somos assassinados há séculos, mas, gente, é o presidente da República falando! Dizendo que “o Exército não matou ninguém”. Somos ninguéns. O Estado se omite sobre um fuzilamento realizado em plena luz do dia, um trabalhador, pai de família. Já pensou que o próximo pode ser você? Já pensou sobre “amar ao próximo”?
Basta! Nós vamos lutar, nós vamos continuar a conscientizar nossa gente, nós vamos nos manter vivos. E, sociedade, você vai ter que lidar com isso.
Dor é dor, a gente chora, mas a gente levanta. Acenderemos velas, como quem acende a chama da esperança para incendiar o mundo de luta por igualdade. Basta do genocídio da gente negra.